*Por Claudinei Roberto da Silva
A julgar por aquilo que observamos à partir da movimentação de museus, instituições culturais, galerias, espaços formais e informais, a produção de artistas negros e negras do país vem confirmando a característica resiliência daquela parte da população da qual esses artistas fazem parte. Pois suas realizações vêm ganhando visibilidade e proeminência na mesma proporção em que avançam as ações antirracistas e anti-colonialistas que pretendem mitigar as mazelas sociais derivadas do racismo que asfixia e mata, e que ainda hoje é negado por aquela parcela da população que dele sempre se beneficiou.
Seria possível cogitar uma família artística afro-brasileira contemporânea? Sobre uma genealogia qualquer capaz de agrupar artistas em linhagens de projetos que por algum motivo se imantem? Essa genealogia seria de confecção tão arredia quanto qualquer outra que se refira ao povo preto brasileiro. Mas, no intuito de conter ou denunciar o epistemicidio que corre paralelo ao genocídio da população negra, a prospecção das memórias e ancestralidades dos descentes dos escravizados africanos vem se constituindo em uma das tarefas a que tem se dedicado uma parte expressiva de artistas afro-brasileiros que têm na sondagem da história, na construção de identidades e na desconstrução de preconceitos o mote de suas poéticas. Este talvez seja um índice.
Quando vivo, Sidney Amaral (1973-2017) esteve muito próximo de Rosana Paulino, que ele chamava de “madrinha”. Partilhavam ideais estéticos e a crença no poder transgressivo e transformador da educação. Sidney Amaral, a despeito de sua ascensão artística, permaneceu professor da rede pública de ensino até sua morte. Essa dupla jornada de trabalho que intercalava o ateliê e as salas de aula não contrariava Amaral ou Paulino. O magistério sempre esteve em suas cogitações e na perspectiva de ambos, o que apenas confirma a complexidade e as exigências da prática artística atravessada por preocupações de ordem social. Em comum, Paulino tinha com Amaral o interesse pela história pretérita e atual da diáspora afro-brasileira; Rosana Paulino é uma artista pesquisadora, fundamenta suas proposições a partir de diligentes investigações e isto não tem significado um esfriamento de sua poética. Pelo contrário, ela parece extrair das verdades prospectadas a contundência de trabalhos como Assentamento, e não por acaso a artista mantém em seu ateliê uma alentada biblioteca replicando a mesma atitude que, quando vivo, acalentava Sidney Amaral – que, além disso, procurava organizar uma hemeroteca onde arquivava imagens e textos os mais variados, que costumavam abastecê-lo de ideias e alimentavam sua indignação.
Em 2018 Rosana Paulino teve sua obra contemplada em uma mostra retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo, instituição que foi dirigida pelo curador Tadeu Chiarelli, que era professor titular do Departamento de Arte da Universidade de São Paulo quando da passagem da artista por lá; foi ali que, em 1994, ainda como discente, a artista elaborou uma obra que é até agora central na sua história – A parede da memória, trabalho que seria adquirida muito posteriormente pela mesma Pinacoteca que, aliás, também adquiriu uma importante coleção de obras de Amaral.
Tanto Rosana Paulino quanto Sidney Amaral realizaram obras que exibem grande apuro técnico na sua execução. Em suas cogitações residia a ideia de que os trabalhos deveriam permanecer, resistir à passagem dos anos, como um testemunho de um tempo de transição e de transe que eles protagonizaram. Rosana Paulino além do mais é restauradora por formação, o que também explica seu rigor na execução dos seus trabalhos. Para um e outro, a técnica apurada e as formas que ela faz surgir estão à serviço de um projeto poético – são atravessados por ética e política e não dizem de virtuosismo, embora ele seja evidente, mas realçam aquela competência às vezes negada ao artista afro-brasileiro.