*Por Maria Gabriela Saldanha
Neste 8 de março, com o avanço conservador que propaga o ódio a minorias, respondendo pelo acirramento da perseguição às religiões de matriz africana e pela extinção de direitos conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, teríamos muito a aprender com as sacerdotisas destas religiões a respeito de mulheridade e resistência, se nos abríssemos às suas vivências e à riqueza simbólica de sua ancestralidade.
Algumas referências muito interessantes para repensarmos a autonomia das mulheres no mundo estão presentes no conjunto de saberes arquivados sob o imaginário de Pombajira (“Pombagira”, em grafia popular). Muitas vezes, bem antes que qualquer discurso feminista pudesse alcançar essas mulheres, os saberes transmitidos oralmente no âmbito de seu cotidiano religioso e comunitário foram as únicas ferramentas de sobrevivência.
Conforme definição de Luiz Antonio Simas, historiador e pesquisador de manifestações populares: “Do ponto de vista da etimologia, a palavra Pombajira certamente deriva dos cultos angolo-congoleses aos inquices. Uma das manifestações do poder das ruas nas culturas centro-africanas é o inquice Bombojiro, ou Bombojira, que para muitos estudiosos dos cultos bantos é o lado feminino de Aluvaiá, Mavambo, o dono das encruzilhadas, similar ao Exu iorubá e ao vodum Elegbara dos fons. Em quimbundo, pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as encruzilhadas. Mbombo, no quicongo, é portão. Os portões são controlados por Exu”.
Então temos uma forma de mulheridade disponível no inconsciente coletivo de diversos povos que é dona dos caminhos. Isso é suficiente para manter viva a memória e o desejo de um modo de ser mulher que rompa com o confinamento patriarcal na dimensão privada e no estereótipo de feminilidade, percebendo-se livre física, emocional, social e espiritualmente para ir a toda parte. Por essa perspectiva, quando entendemos que Pombagiras regem as estradas, talvez estejamos falando simbolicamente sobre mulheres ocupando todos os espaços; se elas podem também bloquear passagens, o seu “não” é definitivo, de modo que qualquer perturbação a ele obstruirá o fluxo da vida e dos interesses coletivos; quando falamos sobre encruzilhadas (cruzamentos, opções) evocamos um sistema de escolhas que contemple as mulheres; quando nós relacionamos tais entidades ao cemitério (mundo dos mortos), que têm suas próprias ruas e esquinas, estamos destacando o trânsito nas próprias sombras, ou seja, sabendo caminhar em nós mesmas, em nossos labirintos psíquicos, atentas às marcas das diversas formas de violência para que não condicionem o nosso caminhar.
Por outro lado, a força vital simbolizada nas Pombagiras é a da plena consciência do corpo e da sexualidade não referenciada no pecado ou na cultura de objetificação/abuso, mas na qualidade de potência. O que vai na contramão de toda a socialização feminina, já que misoginia é uma forma de opressão estrutural construída especificamente sobre o corpo do ser humano nascido mulher, que é castrado de muitas maneiras ao longo da vida para corresponder ao projeto de submissão para ele previsto em muitos níveis. Isso implica dizer que Pombagira nos restitui a noção – inegociável – de que o corpo da mulher somente a ela deveria pertencer e que essa é a condição fundamental para que os caminhos existam. Os caminhos para a evolução de todos nós, uma vez que a libertação das mulheres alavanca toda a coletividade e garante o pleno desenvolvimento das próximas gerações.
*Maria Gabriela Saldanha é escritora e ativista feminista.