A maneira como percebemos a realidade da vida em sociedade é dialeticamente afetada pelas experiências que nela desenvolvemos, pela multiplicidade das relações construídas e das hierarquias produzidas e estabelecidas nos territórios regidos pelo capitalismo em sua versão periférica. Se existir um consenso qualquer a propósito dessa 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível, ele, provavelmente, confirmará, ou não, a ascensão das sensibilidades contra-hegemônicas, que repelem e resistem a outras vocações disciplinadas pela heteronormatividade excludente e, por consequência, racista, xenófoba, frequentemente misógina e infalivelmente homo e transfóbica.
Esse léxico prospectado para a construção das narrativas constituídas a contrapelo do poder é, na sua forma afirmativa, historicamente novo, um conjunto de conceitos que participam da pretensão de ultrapassar crônicas até aqui consolidadas, permitindo assim a revisão paulatina de programas tidos como paradigmáticos.
Nas experiências nascidas do enfrentamento à necropolítica (definição de Achille Mbembe) não é insignificante que as periféricas instituições socioculturais do país se apresentem, em maior ou menor grau, e a partir de suas vocações e atributos constitucionais, como territórios eróticos e erotizantes, simbolica e sincreticamente. Exu deus afro-atlântico e Eros – personificação grega do desejo, que, como Exu, é mensageiro da fertilidade – unem-se na oposição a Tânatos, regente da morte e de suas pulsões.
Essa opção se explicita em organizações como os quilombos e aldeamentos, mas também nos museus de comunidades e favelas, que os há em várias formas e feitios como, por exemplo, a interessante Comunidade Cultural Quilombaque, criada em 2005 no bairro de Perus, na região Noroeste de São Paulo. Eles e seus congêneres, não apenas sobreviveram à necropolítica que pauta nosso cenário histórico, mas, além disso, lograram desenvolver léxicos, tecnologias, discursos e práticas de resistência e repelência à violência, simbólica e, às vezes, letal, a que estiveram e ainda estão expostos.
O título que nomeia a mostra bienal de São Paulo, Coreografias do impossível, sugere, claro, uma gama variada de interpretações, entre elas aquela que, presumivelmente, pondera sobre a irrupção de uma produção que, contrariando certa expectativa reacionária, não foi interrompida, apesar dos ingentes esforços que diuturnamente tem promovido contra ela.
Se instituições como a Bienal de São Paulo, e os grandes museus e as instituições análogas da cidade e do país, têm o condão de projetar o poder político, econômico e simbólico da classe, do gênero e da raça de quem, afinal, organiza e patrocina eventos dessa magnitude, isto não acontece à revelia e à margem da vontade de outros grupos, mas, pelo contrário, sinaliza para um processo de disputas que vai exigindo revisão de práticas (e de acervos) concomitante ao aprofundamento de teses que resultem em ações mais democráticas e, por isso, mais inclusivas. Não é, portanto, destituída de sentido a presença nos pavilhões dos movimentos sociais e seus análogos, como o Quilombo Cafundó, a Cozinha Ocupação 9 de Julho, MTST (movimento dos trabalhadores sem teto) que não se confundem, mas reiteram potências que outras estratégias no campo da arte já vinham evidenciando vide a Frente 3 de Fevereiro, aliás participante da Bienal.
REPARAÇÃO
Não se deve exagerar sobre o caráter supostamente liberal da instituição que franqueou ao público o acesso a obras de teor contestatório, pelo contrário, foi justamente a “pressão” organizada das parcelas oprimidas pelo epistemicídio e pelo horror econômico que vem exigindo a circulação e o acesso às representações artísticas e intelectuais presentes nesta Bienal. Aliás, a ascensão de negras, negros, originários e outros grupos marginalizados também é devedora das conquistas de políticas públicas que recentemente promoveram ações afirmativas e de reparação, notadamente visando criar acesso à educação superior.
No centro do pavilhão térreo que dá acesso à exposição, uma discreta estrutura branca e cruciforme sustenta, em cada uma das suas bases, uma televisão, em que são apresentados filmes documentários sobre a bailarina e coreógrafa afro-americana Katherine Dunham (1909-2006). Lendária, Dunham teve, e continua tendo, um papel relevante na sua área e mesmo fora dela, já que teve atuação destacada na luta por direitos civis em seu país. Dunham, através da sua atuação nos palcos, procurou erodir e contestar a dicotomia que opõe conhecimento assim chamado “erudito” àquele de extração “popular”. Sua dança atualiza a importância dessa linguagem pois trata-se da manifestação que participa religiosa e secularmente do centro de cosmogonias que foram duramente reprimidas, justamente por participarem de maneira constitutiva do universo simbólico e cotidiano dos colonizados e oprimidos, que através da dança preservaram (protegeram) seus corpos em sintonia com suas mentes.
E é emblemático que neste mesmo primeiro piso esteja presente o trabalho do também pioneiro artista e curador negro Emanoel Araújo (1944-2022). Falecido há exato um ano, ele também foi um dos artífices dos caminhos que nos trouxeram até aqui e a alguns dos resultados presentes nesta exposição.
Essas escolhas sugerem um projeto curatorial que recusa o epistemicídio a que são submetidas as populações a que, significativamente, muitos dos artistas presentes na mostra pertencem.
No museu criado por Araújo em 2004, o Afro Brasil, que recentemente incorporou ao seu nome o nome de seu criador, há marcada presença de obras realizadas com materiais também recorrentes nesta bienal, quais sejam, a terra, a argila, cerâmica e madeira, além de tecelagens de cunho artesanal. Materiais que, além de constituírem obras, dão origem a tecnologias como aquela empregada por Denilson Baniwa na roça de milho que cultiva num dos pavilhões da exposição.
Rommulo Vieira da Conceição, artista e professor baiano radicado em Porto Alegre, no sul do país, apresenta proposições instalativas que investigam arquiteturas a partir da reprodução colorida de alguns de seus elementos. Elas existem em contraste com o branco e as curvas modernas do prédio da Bienal. Conceição, afrodescendente, não replica na sua obra os protestos militantes. Embora existam elementos que sutilmente sugiram sua origem étnica, não é sobre esse tema que o artista se debruça. Essa, digamos, fronteira, que estabelece o campo da militância, da arte participativa e do suposto formalismo apolítico é cada vez mais obsoleta, pois não é exatamente de tensão que trata a obra, mas da realocação, de deslocamento de significados e de sentidos.
O trabalho da fotógrafa Rosa Gauditano, por exemplo e a propósito, amplia o debate em torno de uma história lésbica no país, mas para além disso revela a gravidade de uma obra até então pouco considerada. A história que ela apresenta a partir das suas fotos, apesar dos avanços observados em certos círculos, continua em geral na surdina. Aqui ela ganha amplitude, como se estabelecesse uma “zona temporária de liberdade”, que fora desse território é interditada pela agenda dos assim autodenominados conservadores.
A sedimentação de um vocabulário que traduza as inquietações dos divergentes permitirá que ele seja incorporado ao repertório das ideias e ações do cotidiano. Banalizado, esse mesmo glossário pode injustamente sugerir que já existe uma equitativa representação de classe, gênero e raça no ambiente da arte. Pode, pior ainda, sugerir o predomínio de um grupo, antes estigmatizado e relegado, sobre outro, que sempre foi incensado e super representado. Os quatro curadores dessa Bienal, Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, trazendo para o centro do pavilhão produções historicizadas, como a de Emanoel Araújo ou em processo de historicização, como a obra de Rosa Gaditano e Sidney Amaral (1973-2017), assumem o risco de sinalizar para a necessidade de, justamente, validar a permanência e a circulação das experiências e histórias de hoje a partir de outras que um dia também foram percebidas como divergentes.
Interessante tudo isso!!