“Negro é lindo / Negro é amor / Negro é amigo / Negro também é filho de Deus”, canta Jorge Ben Jor (então Jorge Ben) na primeira estrofe da canção que dá título a seu oitavo álbum, de 1971. Naquele início de década, no Brasil e no mundo, a exaltação à negritude era palavra de ordem.
Em São Paulo, um dos artífices para o levante de autoestima empreendido pela juventude afrodescendente foi a cena de bailes black, como eram chamadas as festas espalhadas pelos subúrbios e periferias da capital paulista.
Por meio de alguns dos personagens que construíram essa história, CULTURA!Brasileiros contará em dois capítulos – o primeiro deles um recorte entre os anos 1960 e 1970 – como surgiu e como foi disseminada a vertente brasileira do Black Power, movimento que marcou a luta dos negros norte-americanos por igualdade de direitos civis e reverberou em diversos países do mundo.
Capítulo 1 – Dos discotecários aos DJs
Em 1958, um Brasil moderno despontava com o surgimento da Bossa Nova, a construção de Brasília e a conquista, na Suécia, do primeiro de cinco títulos mundiais de futebol. Foi também naquele ano que Osvaldo Pereira, um técnico de rádio e TV, nascido em Muzambinho, em Minas Gerais, e radicado em São Paulo, fez história ao se tornar o primeiro DJ do País, ou melhor, o primeiro “discotecário”, como prefere ser chamado.
Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Seu Osvaldo, codinome artístico do veterano, de 82 anos, revelou que sua paixão pela música teve início na adolescência, em festas familiares onde sempre dava um jeito de tocar os discos de 78rpm que continham temas dançantes de artistas como Jacob do Bandolim, Luiz Gonzaga e Jorge Veiga.
Também aficionado por rádios e determinado a desvendar a magia por trás do aparelho, logo que chegou a São Paulo, Osvaldo soube de um curso ministrado à distância pela empresa norte-americana National e decidiu investir na formação de técnico de rádio e TV. O conhecimento adquirido com o curso abriu caminho para um emprego na loja Eletro Fluorescente Harpaco, situada na rua Guainases, no centro de São Paulo, onde passou a construir rádios portáteis e também a cuidar da sessão de discos, como vendedor e responsável pela renovação do estoque
Naquele fim de anos 1950, estavam em voga nos centros urbanos do País os grandes bailes conduzidos por big bands. Com a premissa de música ao vivo executada por grupos de dez a 15 músicos, custava caro produzir festas dessa natureza. Consequentemente, os ingressos eram restritivos, sobretudo para o público negro. Mas, a partir da profissionalização de Osvaldo como discotecário, surge na capital paulista uma alternativa de baixo custo.
“Em 1958, comecei a ganhar dinheiro tocando em domingueiras no Edifício Martinelli. Vendo que o público era crescente, o organizador do baile apostou que também podia lucrar fazendo festas que virassem a madrugada e alugou um imóvel no número 82 da avenida Rio Branco, onde passei a tocar aos sábados das 22h às 4h.”
Por sugestão de Francisco, um grande amigo do trabalho, que cursava Inglês, Osvaldo deu ao baile o enigmático nome de Orquestra Invisível Let’s Dance. Batismo justificado pelo fato de o discotecário, municiado do potente equipamento de som que construiu para as festas, tocar seus discos sempre por trás de uma cortina. Quando menos se esperava, o palco era descortinado e os casais descobriam que não havia orquestra, mas sim Osvaldo a manipular o toca discos que os fazia dançar ao som de big bands lideradas por artistas como Glenn Miller, Ray Conniff e Ray Charles.
O baile de música mecânica deu tão certo que logo surgiram seguidores de Osvaldo. Discotecários pioneiros na cena dos bailes black, como Amauri, Eduardo e o trio Os Carlos, começavam a organizar festas em outras regiões da capital paulista e, cada vez mais, atraíam um público majoritariamente negro.
As peculiaridades entre o discotecário e o DJ, Seu Osvaldo explica, tinham a ver não só com a técnica adotada por ambos, mas também com as nuances de comportamento do público. “Em 1962, eu fiz uma espécie de mixer (equipamento que mistura e faz a passagem das músicas tocadas pelos DJs) e meu patrão me emprestou um segundo toca-discos. Achei que a novidade seria um sucesso, mas fui reprovado, porque aquele intervalo entre a troca dos discos servia justamente para os rapazes continuarem de mãos dadas e de galanteio com as moças. Depois disso, nunca mais fiz bailes com dois toca-discos.”
A decisão de abandonar a vida de discotecário se tornou irremediável para Seu Osvaldo, em 1972. Com a morte de sua mulher, Carolina, ele teve de se desdobrar para trabalhar na linha de produção da fábrica de televisores da Philco e cuidar dos cinco filhos, quatro meninos e uma menina. Dos garotos, dois seguiram o exemplo do pai, o mais velho, Tadeu, de 56 anos, também um renomado discotecário, e o caçula, Luís Claudio, o DJ Dinho, de 43 anos.
Em 2003, Seu Osvaldo ganhou justo reconhecimento ao ser incluído na galeria de personagens perfilados no livro Todo DJ já Sambou, da jornalista Claudia Assef. Na festa de lançamento da primeira edição, o patrono dos DJs brasileiros foi convidado a voltar a tocar. Feliz com a retomada, ele permanece em atividade até hoje.
O ponto de encontro com os entrevistados que compõem essa reportagem foi o Boteco Pratododia, um pequeno clube de música sediado no número 34 da rua Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, que é reduto de dezenas de DJs dos mais diferentes gêneros. O local não foi escolhido por acaso. Afinal, o estopim da matéria foi um bate-papo informal com outros dois veteranos, os DJs Claudio Costa e Lula Superflash (vulgo artístico de Márcio Pequeno), que realizam, no clube, um baile mensal chamado Pixaim. Durante uma edição recente da festa, ao ouvir boas histórias contadas pela dupla, este repórter e um dos sócios do Pratododia, Luis Felipe Freitas, também jornalista, chegaram à conclusão de que as trajetórias da dupla e de outros anônimos que construíram a história dos bailes black em São Paulo deveriam ser contadas, sobretudo por seu papel de exaltação à negritude.
O fenômeno foi mesmo significativo. No auge do movimento, festas como a Chic Show, criada por Luizão, outro ícone da era dos discotecários, chegavam a reunir mais de 15 mil pessoas. Empreendedor, Luizão trouxe ao País artistas como os grupos Zapp e Whodini e, o mais emblemático deles, James Brown, que veio a São Paulo, em 1978, e lotou o ginásio do Palmeiras, palco frequente dos maiores bailes da Chic Show.
Claudio estava lá e assegura: “Para resumir, foi sensacional, de tirar o fôlego. Imagine a gente, que não tinha acesso a grandes shows, víamos um Jorge Ben aqui, um Gilberto Gil ali, de repente estar frente a frente com ninguém menos que James Brown…”.
O efeito James Brown
Mas, se em 1978 o patrono do funk era unanimidade entre blacks da capital paulista, dez anos antes, os organizadores de bailes locais viam com desconfiança a ascensão do novo ídolo. Caso do advogado Sérgio Nogueira Teófilo, o Serjão, discotecário de primeira hora que começou a tocar profissionalmente em 1964.
“Como eu dançava muito, meus colegas ficavam enciumados porque as garotas só queriam fazer par comigo e acabei sendo mandado para os toca-discos. Mas tomei gosto pela coisa e onde havia uma festividade lá estava eu com meus discos. Na minha seleção entravam artistas como Gary McFarland, Trio Esperança, Milton Banana, Lenny Dale, Bossa Três, Elza Soares, Luiz Carlos Vinhas, Bert Kaempfert, Gal Costa, Jorge Ben, Trio Mocotó, Wilson Simonal, Som Três e Os Caçulas. Só parei de tocar por causa de um novo tipo de música que veio com um cara chamado James Brown. Depois de todos esses artistas maravilhosos que eu mencionei vem esse rapaz, gritando alucinado com um ritmo que, para mim, era sempre o mesmo. Parei”, diz Serjão.
Também presente na entrevista, Dinho explica: “Houve uma ruptura geracional. Não foi só o Serjão que não engoliu o soul e o funk. Foi praticamente toda a dinastia oriunda da Orquestra Invisível. Tanto é que esse tipo de som que eles tocavam só foi voltar a fazer sucesso nos bailes dos anos 1980, com a volta da equipe Os Carlos. Foi aí que o estilo ganhou o nome de nostalgia”, diz. Segundo Lula, as divisões dessa fase transitória eram perceptíveis não só nas escolhas das equipes de som que surgiram nos anos 1970, mas também nas preferências do público de cada região. “Na zona leste, nos bailes do salão Guilherme Giorgi, a equipe Zimbabwe só tocava funk e soul. Depois veio a equipe Zambezi, que fazia o mesmo estilo e não rolava nada de samba-rock. Quem voltou a tocar samba-rock foi a Chic Show, nas festas São Paulo Chic, o Clube da Cidade, na Barra Funda, e a Black Mad, na Vila Brasilândia.”
Lula, que foi fundador das equipes WMS, Side One e Master One, e colaborador da Zimbabwe, da Black Mad e da Dinamite, conta agora sua história. “Ao contrário do Serjão, virei DJ porque não tinha a menor vocação para dançar. Aos 14 anos, deixei o emprego de office-boy para trabalhar na loja Fernando Discos, que ficava no Edifício Zarzur, na avenida Prestes Maia, no centro. Na história dos bailes black de São Paulo, todos batem palmas para o Fernando, porque ele foi o primeiro lojista a deixar a gente ouvir os discos. A gente gastava muito dinheiro comprando LPs, mas nem todos serviam para os bailes. Desde que entrei na loja, tive a sorte de ver todas as transições que eles estão contando: os discotecários, as equipes e os DJs. A única diversão que os afrodescendentes de São Paulo tinham era o futebol, o samba e o Carnaval. Os bailes abriram uma nova possibilidade de união.”
A questão racial
“No começo dos anos 1970, toda sexta-feira havia um corpo a corpo no Viaduto do Chá. A negrada se reunia para saber dos bailes que iam rolar no fim de semana e o viaduto ficava tomado de ponta a ponta”, diz Claudio. Ele, que completará 60 anos em julho, começou a tocar, em 1968, em festas familiares e bailes de garagem no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo. Nos anos 1980, foi DJ do Asa Branca, clube de Pinheiros, na zona oeste da cidade, fez muitos bailes da Chic Show e também trabalhou para a Rádio Bandeirantes FM, onde foi produtor e locutor dos programas New York Express, Sweet Love e Até Que Enfim é Sexta-Feira.
Marcados pela despretensão da dança, os encontros dos anos 1960 resultaram no sentimento de coesão que, na década seguinte, estimulou o enfrentamento do racismo, como atesta o relato de Serjão. “As reuniões para divulgar os bailes tiveram início na rua Direita, porque havia a divisão entre os de pele clara, que ficavam no Viaduto do Chá, e os de pele escura. Depois é que, na marra, a rapaziada passou a se reunir no viaduto.”
Lula aproveita o gancho para mapear a migração do movimento black pelas ruas do centro: “Os encontros começaram na rua Direita, passaram pelo Viaduto do Chá e foram para as galerias da rua 24 de Maio na segunda metade dos anos 1970, onde permaneceram até o começo dos anos 1980, quando a Polícia Militar começou a sentar a borracha na turma. Foi então que partimos para a praça Antonio Prado, no lado oposto do centro, e depois fomos para a estação de metrô São Bento, onde surgiu o hip-hop brasileiro. Como a estação tem mais de dez saídas, era ideal para fugir da PM. Se eles viessem por um lado, a gente fugia pelo outro. Até o Djavan tomou borrachada na rua Direita”, recorda Lula. “Também, negro e com aquele cabelo…”, provoca Serjão, que esclarece: “Naquela época, bastava juntar um grupo de pretos na rua para a polícia chegar. Os brancos tinham medo e não se misturavam com a gente. Não iam aos bailes, porque temiam ser roubados. O conceito deles era: naquele lugar só tem ladrão. Hoje a mistura é tanta que tem até japonês.”
O depoimento de Serjão converge com o comentário de outro veterano dos bailes black de São Paulo, o DJ Tony Hits, criador, em 1972, da equipe Verde Amarelo, na Vila Santa Catarina, na zona sul de São Paulo. “Nos anos 1970, você contava nos dedos as pessoas de pele clara que iam aos bailes. Hoje, o público é mais diverso e os lugares que tocamos também.” Além de uma loja de discos que leva seu nome, Tony comanda bailes ao lado de parceiros da velha guarda, como Charles Team, outra figura legendária dos bailes black, e Seu Osvaldo.
Naquele período de cisão entre brancos e negros, vestir-se bem e manter o cabelo impecável, explica Serjão, eram práticas decorrentes do preconceito racial: “O dever do negro era andar alinhado para não ser visto como maloqueiro, como bandido. Aliás, se você fosse mal-vestido ao baile, bastava olhar para a fila para desistir de entrar”, defende. “Era a maior onda. Todo mundo de cabelo black. Homens e mulheres alinhados. Os rapazes de paletó xadrez, camisa de seda, sapato brilhando, calça boca de sino”, relembra Claudio.
Herança
De ouvidos atentos aos relatos dos seguidores de sua tradição, Seu Osvaldo retribui a reverência que sempre recebeu. “É tão difícil descrever a alegria que carrego comigo. Agradeço aos DJs de agora e tiro o chapéu para eles, porque são eles que continuam a fazer com que aquela sementinha que eu plantei em 1958 esteja viva.”
Parceiro de discotecagens do pai, Dinho comenta que o ofício do patriarca inspirou, além dele e do irmão, Tadeu, mais de 20 familiares que também são DJs, entre eles um personagem que marcou os anos 1980 e a consolidação do rap na década seguinte, Grandmaster Ney. Para Dinho, em um meio comumente afetado por vaidade, um dos valores mais importantes ensinados por Seu Osvaldo é a postura de humildade. “O DJ é uma espécie de médium. Lida com uma coisa meio espiritual, porque ele tem de captar a energia da pista e traduzi-la em música. Tive o privilégio de aprender com meu pai que é a música que tem de ter holofotes e não o DJ.”
Na próxima edição, o capítulo final desta reportagem. Em pauta: a transição para a cena hip-hop dos anos 1980, a redescoberta do samba-rock pela geração dos anos 2000 e as festas que mantém viva a tradição dos bailes black.
MAIS
Leia Segue o Baile, segundo capítulo desta reportagem
Veja depoimentos de Luizão, criador da equipe, sobre os bailes da Chic Show no Palmeiras