Se o visitante entrar na sala do Instituto Moreira Salles onde estão expostas obras de J. Carlos (J. Carlos: Originais, até 26 de janeiro de 2020), e se encaminhar à esquerda, rumo à cronologia ilustrada da vida e carreira do artista, não deve deixar de reparar em uma ilustração colocada logo no início: a reprodução da capa da revista A Avenida, de 25 de junho de 1904, um dos primeiros trabalhos publicados por J. Carlos. Examinando aquela imagem fica nítido como o desenhista parece ter como um dos seus parâmetros a produção do artista tcheco Alphonse Mucha, nascido em 1860, falecido em Praga, em 1839.
É certo que a presença de Mucha na produção de J. Carlos parece pontual e concentrada sobretudo no início de carreira do brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1884 e falecido na mesma cidade em 1950. Se caminharmos pela cronologia, e depois pela própria exposição percebemos como, aos poucos, J. Carlos começa a desenvolver uma linguagem que se distancia daquele que deve ter sido um dos seus primeiros modelos, até forjar seu lugar próprio na cultura visual brasileira. Esse lugar, por sua vez, pode ser aproximado – se bem que não de maneira absoluta –, ao âmbito do que se convencionou chamar Art Déco, tendência que, tendo absorvido e deglutido certos ensinamentos retirados das vanguardas históricas, sobretudo das vertentes cubistas (isso: existiram algumas e não apenas uma vertente cubista), espalha seu delírio geometrizante para tudo quanto é objeto, das capas de revistas a edifícios, de frascos de perfumes a automóveis e assim por diante.
Carlos absorve aqui e ali alguns princípios do Art Déco na quantidade impressionante de obras que produziu, mas, antes de continuar os comentários sobre sua produção exibida no IMS da Paulista, minha ideia é chamar a atenção para a mostra que ocorre na mesma Avenida, no Centro Cultural Fiesp: Mucha: o legado do Art Noveau (até 15 de dezembro).
Incrível como São Paulo anda pródiga em encontros, ou melhor dizendo, concomitâncias. Como já me referi em outra dessas “conversas”, há pouco São Paulo teve, num mesmo período, as exposições de Marc Ferrez e Man Ray (leia aqui); agora temos, ao mesmo tempo, a exposição de J. Carlos e a de Alphonse Mucha. Que experiência excepcional visitar as obras dos dois artistas, separadas apenas por uma rápida caminhada entre o IMS e o CCFiesp, na Paulista! Mucha e J. Carlos, embora tenham se manifestado pelas artes gráficas, percorreram caminhos distintos, devido à diferença de geração (embora tenham sido contemporâneos), às filiações estéticas e aos ambientes que frequentaram. Mesmo assim, o cotejamento entre as obras dos dois vale uma visita às duas retrospectivas.
A exposição dedicada à obra de Mucha, na Fiesp – em si mesma, um acontecimento a ser prestigiado –, está dividida em três segmentos. O primeiro, aquele que apresenta as obras produzidas em seu período parisiense, quando ajudou a forjar, consolidar e expandir aquela que foi a primeira grande vertente estética de (e para as) massas, o Art Noveau. Poder observar, frente a frente, a excelência de seus cartazes, pôsteres e outros produtos gráficos (capas de revistas, rótulos de perfumes, de biscoitos etc.) é reviver a passagem do século 19 para o 20 a partir de uma produção visual que, mesmo levando-se em conta seu sentido intrinsecamente comercial, visava, da mesma maneira, expandir um determinado conceito de beleza que – concordemos ou não –, buscava naturalizar a técnica, a indústria e o comércio, tornando a metrópole menos madrasta, talvez, e seu habitante menos órfão da afetividade da forma.
O que chama a atenção é como, já na produção parisiense do artista, a imagem da mulher é instrumentalizada para a venda dos mais diferentes produtos. Nos cartazes de Mucha, os logos das mais diversas mercadorias mesclam-se aos cabelos, às mãos, aos braços, a todas as partes de suas representações femininas, altamente idealizadas, acabando por confundir os nomes dos produtos às formas da mulher.
O segundo segmento da exposição apresenta a continuidade do trabalho de Mucha, agora em Praga, após quase 25 anos vivendo em Paris.
Se na capital francesa a busca de fusão entre a imagem da mulher e o logo do produto a ser comercializado, era alcançado dentro de uma leveza serpentina e de um delicado erotismo (não, bolsominion, não se trata de uma exposição pornográfica), em Praga essas características dão lugar a composições mais solenes e comprometidas sobretudo com questões sociais e políticas de seu país. Visitando essa parte da mostra, sente-se saudades da imagem de Paris que Mucha e seus cartazes, rótulos e pôsteres ajudaram a criar. Não que as obras produzidas em Praga não tenham interesse, longe disso, mas carregam um compromisso ideológico que acaba por se impor de maneira, talvez, contundente demais, diferindo-se do período anterior quando se percebia resoluções mais eficientes no entrosamento entre a forma e conteúdo.
Já a terceira e última parte apresenta o alastramento daquilo que os organizadores da retrospectiva chamaram de expansão do “estilo Mucha”, fenômeno que se espalha, dos Estados Unidos à Coreia do Sul, passando pela Inglaterra, Índia e outros países. Esse é outro momento alto da exposição, sobretudo pelos cartazes produzidos em Londres e San Francisco. Neles, a presença de Mucha é fundamental e totalmente envolta num clima psicodélico que, apesar de tudo, ainda mantém lá seu interesse estético. (Por outro lado, essa produção nos leva a pensar sobre as ironias da história das imagens: afinal, como formas típicas de uma arte forjada para vender bens de consumo, passadas algumas décadas conseguem imperar no universo visual de partes do underground internacional?).
Se alguém me perguntasse se, ao sair da mostra, senti falta de algo, eu diria que sim. Senti falta, sobretudo, de um segmento brasileiro, que informasse ao público sobre a presença de Mucha em produções de artistas importantes do Brasil, como Eliseu Visconti, Theodoro Braga e do próprio J. Carlos, entre outros. Essa ausência de brasileiros que, com certeza, tiveram a arte de Mucha como parâmetro, apenas seria possível, na verdade, se o Centro Cultural Fiesp não funcionasse somente como um espaço receptor de boas exposições (muitas delas vindas do exterior, como essa, cuja origem é a Fundação Mucha, de Praga), mas que agisse também como uma instituição comprometida com a pesquisa e a formação mais profunda do público paulistano, aprofundando questões suscitadas a partir das mostras que importa.
Rever as contribuições dos artistas que ajudaram a expandir o “estilo Mucha” no Brasil, sem dúvida seria trabalhar para que a retrospectiva ganhasse raízes mais significativas junto aos visitantes. É claro que esta postura nada propositora do CCFiesp pode vir a mudar. Depende apenas de uma escolha da instituição de querer tornar-se ainda mais importante e significativa do que já é.
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A lacuna percebida na mostra dedicada à obra de Mucha pode ser pelo menos parcialmente suprida com uma visita à retrospectiva dedicada à obra de J.Carlos no IMS, ali perto. Não que com essa mostra se esclareça o quanto J. Carlos pode ter devido a Mucha em seu início de carreira (na verdade, esta é uma hipótese ainda a ser comprovada e não fez parte dos objetivos dos organizadores da exposição), mas, pelo menos, J. Carlos: Originais pode levar o público a comparar as duas mostras, a refletir sobre como as artes gráficas se desenvolveram de forma plural do final do século XIX até meados do século passado.
J. Carlos: Originais, a meu ver, parte de uma premissa problemática: apesar do cuidado dos curadores de, no catálogo (excelente, por sinal), advertirem que, com a exposição, não pretendiam contribuir para o “culto ao objeto único”, J. Carlos: Originais, já a partir de seu título, valoriza os desenhos preparatórios para capas de revistas, historietas etc., em detrimento das imagens publicadas.
A partir do título, subsiste uma desnecessária valoração do conceito de “original”, que entende ser o desenho preparatório melhor ou mais significativo do que sua resolução gráfica final. Ora, realizar uma exposição de um dos mais interessantes artistas brasileiros da primeira metade do século passado, que se manifestava por meio das artes gráficas, e não reforçar que nesse campo não existe “original”, que o trabalho existe enquanto forma impressa, é confundir o público.
Realizar uma exposição de um artista que se manifestava por meio de técnicas da indústria cultural e, ao mesmo tempo, enfatizar os “originais” é, consciente ou inconscientemente, induzir o público a rever a situação de J. Carlos na arte brasileira, para que ele deixe de ser entendido, supostamente, como um “mero” ilustrador, um “mero” caricaturista, um “mero” quadrinista e possa ser visto como um “verdadeiro” artista.
Nada mais problemático do que pensar, hoje, em uma exposição com tal propósito, pois, em se tratando de J. Carlos, é fundamental insistir que ele tem sua importância na história da arte do país porque produziu uma obra que, por meio da gráfica, levou sua produção para um número incalculável de fruidores que jamais teriam tido a oportunidade de conhecer seu talento e humor (às vezes discutível, como será visto), caso ficasse restrito apenas à produção de seus “originais”.
O que exatamente são desenhos preparatórios, a não ser proposições que ajudam o artista a conceber e desenvolver sua contribuição visual ou verbo-visual e que apenas ganhará plenitude quando impressa na capa ou na página de uma revista?
Felizmente os organizadores da exposição tiveram a sensatez de apresentar tanto os desenhos preparatórios, quanto o resultado final, impresso. E é por essa razão que J. Carlos: Originais se torna outra exposição imperdível em São Paulo.
Percorrer a imensa produção exibida, sempre cotejando os desenhos preparatórios com as imagens efetivas nas páginas impressas, é, de fato, um privilégio que permite ao visitante, não apenas entender o profundo entranhamento da poética de J. Carlos com o cotidiano carioca, como também as várias estratégias de linguagem usadas por ele, não apenas para comentar a vida da antiga Capital Federal, mas também seus diálogos com a produção gráfica brasileira e internacional.
É nesse trafegar por sua obra que se entende com maior clareza como J. Carlos foi atualizando sua maneira de desenhar, ampliando suas referências: daquele possível diálogo inicial com Mucha, nota-se o artista superando o modo gráfico de Angelo Agostini – uma referência vinda de meados do século XIX – e trazendo para a arte brasileira as ressonâncias das vertentes nacionais e internacionais do Art Déco.
Aliás, esses diálogos de J. Carlos com a cultura visual de sua época, extremamente qualificada por sua própria produção, foi um aspecto pouco explorado na mostra e no catálogo que o acompanha, lacuna que, espero, poderá ser superada em breve, com outra mostra, agora mais atenta a esse aspecto. A curadoria preferiu investir na imagem de J. Carlos como um cronista do Rio de Janeiro, e nesse quesito se saiu muito bem, diga-se.
Inclusive, a exposição enfrenta um desconforto que, logo no início da mostra, o visitante mais atento começa a sentir ao se deparar com inúmeras imagens em que se explicitam os graves preconceitos de J. Carlos: são constrangedoras para nosso olhar do século XXI as diversas peças em que o artista tripudia contra a mulher, contra judeus e sobretudo contra os negros. É interessante como a curadoria peita essa questão tão espinhosa, explicitando os problemas em alguns textos espalhados pela mostra.
Os diversos preconceitos de J. Carlos serão discutidos com maior profundidade no catálogo da exposição, no texto, “O moderno e o arcaico em J. Carlos”, assinado pelo estudioso Rafael Cardoso. Nele, o autor enfrenta com respeito, mas sem meias palavras, sobretudo a questão do preconceito contra a população negra do Rio de Janeiro, por parte do artista, atentando para o fato de que J. Carlos, com seus desenhos racistas, não apenas “refletia” o preconceito racial de sua época, mas o intensificava, devido à contundência de suas imagens, assim como pelo poder de penetração das mesmas.
Por essas e por outras é que J. Carlos: Originais se apresenta como uma das exposições mais importantes do circuito paulistano deste ano, uma exposição que deve ser visitada, não apenas pelos interessados por arte e cultura visual brasileira, mas também por todos que se interessam pelas questões sociais do Brasil.
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Finalizando, volto a enfatizar o privilégio de termos separadas por poucos quarteirões da Paulista, retrospectivas de dois artistas indispensáveis para a cultura visual brasileira (caso de J. Carlos) e internacional (caso de Mucha). Visitar as mostras é entrar em contato com uma série de estímulos para que possamos refletir, tanto sobre questões de filiações e superações estéticas, mas também sobre o papel fundamental que a indústria cultural assumiu em nosso cotidiano nesses últimos cento e tantos anos.
Ótimos os textos do Tadeu Chiarelli:-))