As discussões que polarizaram os 100 dias da documenta quinze, em Kassel, encerrada no fim de setembro passado, precisam ser observadas em um contexto mais amplo, dentro de um conceito criado, em 1991, pelo sociólogo James Davison Hunter no livro Cultural Wars, lançado nos EUA, e inédito no Brasil.
Lá, ele aponta como fundamentalistas evangélicos, judeus e católicos conservadores se reuniram em uma batalha pelo controle da cultura secular norte-americana, como ocorreu contra a exposição dedicada ao fotógrafo Robert Mapplethorpe, na Corcoran Gallery of Art de Washington, em 1989, censurada após denúncias de pedofilia.
De certa forma, tiveram início aí batalhas em torno de narrativas que descontextualizam as obras de arte para, por meio de um discurso apelativo, criar a impressão de que a cultura estaria a serviço de desconstruir padrões morais, em sua maioria contra a noção tradicional de família e nação.
Desde então, as ações dentro do que passou a se chamar “guerra cultural” foram ganhando força, inclusive aqui no Brasil, em ocasiões às vezes isoladas, como o cancelamento da mostra de Nan Goldin, no Oi Futuro, no Rio, em 2011, ou a censura à obra Desenhando com terços, da artista Márcia X, na mostra Erótica – os sentidos da arte, no Centro Cultural Banco do Brasil carioca, em 2006.
Já em 2017, essa guerra ganhou contornos mais organizados, especialmente por conta do grupo MBL (Movimento Brasil Livre), que criou nas redes sociais uma onda contra a exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre, encerrada quase um mês antes do prazo previsto, por conta de denúncias de apologia à pedofilia e zoofilia. Ainda em 2017, outra exposição sofreu uma avalanche de protestos: o 35º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, por conta da performance La Bête, de Wagner Schwartz, apresentada na sua abertura.
Nestes dois casos, as mostras sofreram ataques deliberados para se desmoralizar, por meio de acusações exageradamente falsas e descontextualizadas, a cultura em geral, por ser um campo identificado como de esquerda.
Não por acaso, essa onda conservadora foi fundamental para as eleições de 2018 e, agora, de 2022, no Brasil, e seguiu como plataforma do atual governo federal, que tratou a cultura com descaso – acabando inclusive com o Ministério da Cultura – além de reduzir em muito a abrangência da Lei Rouanet.
O que essa questão tem a ver com o debate antissemita na documenta quinze? Tudo. Desde antes da abertura da mostra, em junho, grupos da direita alemã já se manifestavam em Kassel ameaçando artistas que defendiam a Palestina. Contudo, foi na própria abertura que o tema ganhou dimensão por conta do imenso mural Justiça do Povo.
Exibido sem traumas, em 2002, na Austrália, agora ele fora instalado próximo à tradicional sede da documenta, o Fridericianum. Com 12 metros de largura, o painel contém, entre dezenas de imagens, dois judeus, um com chapéu da polícia nazista e outro como integrante do Mossad, o serviço secreto israelense. Os artistas do coletivo Taring Padi, autores do trabalho, disseram se tratar de uma obra contra a violência da ditadura militar de Suharto, na Indonésia.
Importante lembrar que eles têm a mesma origem do ruangrupa, coletivo responsável pela direção artística da documenta quinze. No entanto, no contexto alemão, tão sensível a questões judaicas após o Holocausto, essas imagens causaram revolta e a obra foi recolhida.
“Não há intenção de relacioná-lo, de forma alguma, com o antissemitismo. Estamos tristes que detalhes sejam compreendidos de modo diferente de seu propósito original”, afirmou o Taring Padi em nota, em que também pediam desculpas.
No entanto, já estava criado um ambiente para a polarização, que favoreceu aqueles que viram a possibilidade de guerra cultural em torno da mostra, seja por meio dos veículos de comunicação, que insistiam em questionar a exposição como um todo, e até da própria instituição: primeiro, Sabine Schormann, diretora-geral da documenta quinze, deixou o cargo em julho, e, no mês seguinte, quando continuavam ainda os ataques, foi criado um Comitê de Apoio Científico, para tratar da questão.
Seguindo a linha de acusações infundadas e exageradas das guerras culturais, o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung afirmou que um coletivo judeu de São Paulo teria sido convidado e depois desconvidado. A Casa do Povo, em São Paulo, que durante a organização da mostra serviu como ponto de encontro do ruangrupa com grupos brasileiros, chegou a se manifestar a respeito, desmentindo o jornal alemão e dando apoio à documenta.
Em nota, divulgada pelo e-flux, eles lembram que Graziela Kunsch, única brasileira na documenta [leia sobre a participação da artista VII Seminário Internacional promovido pela arte!brasileiros], baseia-se em conceitos de uma pedagoga judia-húngara, Emmi Pikler (1902-1984), além de apresentar fotos de uma artista também judia-húngara, Marian Reissmann (1911-1991), que documentam a prática de sua conterrânea. Veemente, o texto ainda aponta possíveis motivações para os ataques: “A denúncia justa de imagens antissemitas está sendo instrumentalizada para deslegitimar toda a exposição, atacar uma agenda decolonial e se opor ao pensamento crítico.”
Já o Comitê Científico caiu na armadilha de buscar identificar outros trabalhos com a mesma conotação, reforçando, assim, uma generalização. Em uma declaração pública, em setembro, eles pediram que filmes do coletivo Subversive Film não fossem mais exibidos: “O que há de altamente problemático neste trabalho não são apenas os documentos fílmicos, que contêm peças antissemitas e antissionistas, mas também os comentários dos artistas inseridos entre os filmes, nos quais legitimam o ódio a Israel e a glorificação do terrorismo em o material de origem através de sua discussão acrítica.”
A programação que cita esta nota é o Tokyo Reels Film Festival, assim chamado porque exibia uma série de filmes recentemente restaurados, que estavam sob a guarda do diretor japonês Masao Adachi, dando visibilidade a um arquivo praticamente desconhecido de uma ação solidária e anti-imperialista entre Japão e Palestina.
Contra essa proposta de censura do Comitê, levantaram-se os artistas da própria documenta em nota divulgada pelo e-flux intitulada Estamos bravos, estamos tristes, estamos cansados, estamos unidos – carta da comunidade lumbung.
Além de se opor a todo tipo de censura, a carta explicita a estratégia de guerra cultural: “É óbvio para nós que o mesmo mecanismo de passar a bola de cyberbullies e blogueiros racistas para os principais meios de comunicação, para atacantes racistas no terreno, para políticos e até para acadêmicos, está sendo reproduzido em cada situação”.
Para o conjunto dos artistas, a acusação de antissemitismo merece ser vista sobre outra ótica: “É no contexto da documenta quinze, e nas especificidades do contexto alemão, que vemos que o posicionamento de artistas palestinos é o ponto em que nossas lutas anticoloniais se encontram e se tornaram um foco de ataque. Racismo anti-muçulmano, anti-palestino, anti-queer, transfobia, anticiganismo, capacitismo, castismo, antinegro, xenofobia e outras formas de racismo são racismos com os quais a sociedade alemã deve lidar além do antissemitismo”.
A questão que essa polêmica toda em torno do antissemitismo reforça é como a falta de diálogo acabou impondo uma lógica punitivista, que começou com o encobrimento do painel, seguiu com a saída da diretora-geral e depois com as propostas do Comitê Científico, de forma a acabar encobrindo todo o debate do conteúdo da mostra. Há hoje quem defenda na Alemanha que a documenta não deve mais ser realizada. É a lógica da guerra cultural, onde é preciso eliminar o divergente, no caso, práticas artísticas que condenam as políticas xenófobas do Estado de Israel.
A carta dos artistas teve apoio do Comitê de Seleção da documenta, composto por um time internacional de curadores de grande respeitabilidade, composto por Amar Kanwar, Charles Esche, Elvira Dyangani Ose, Frances Morris, Gabi Ngcobo, Jochen Volz, Philippe Pirotte e Ute Meta Bauer. A nota de apoio, que também se contrapunha a que obras fossem censuradas, foi divulgada no próprio site da mostra. O grupo também apontou para a questão de fundo: “Rejeitamos tanto o veneno do antissemitismo quanto sua instrumentalização atual, que está sendo feita para desviar as críticas ao Estado de Israel, no século 21, e sua ocupação do território palestino”.
Como em toda tática de guerra, aquela que foi empregada nesta documenta buscou apagar qualquer discussão que apontasse para suas qualidades. Muita gente, inclusive, que sequer viu a mostra, passou a afirmar que não havia arte na mostra, como se leu em textos rasteiros que circularam por aí. Trata-se de um evidente equívoco para quem passou por lá.
Primeiro, porque esse debate de falta de arte é totalmente equivocado. Desde a antológica mostra Live in your head: when attitudes become form, organizada por Harald Szeemann, em 1969, a materialidade não é uma questão de fato, mas a vida na cabeça, sim. E, nesse sentido, a mostra tinha uma vitalidade como poucas que vi.
Esta edição da documenta merece ser comemorada como uma de suas edições mais complexas, que teve a coragem de ignorar solenemente o mercado de arte, que deu visibilidade a uma imensa quantidade de artistas pouco conhecidos, especialmente do sul global, e que criou, com o lumbung, uma nova chave para se pensar a arte contemporânea.
Não por acaso, o curador Charles Esche aponta que essa edição será lembrada como uma das primeiras mostras do século 21 que “aceita que o capitalismo se tornou simplesmente destrutivo e não tenta reformar ele”. E completa: “Ela aponta como a vida pode sobreviver e prosperar em face à hostilidade de um sistema mundial econômico e social catastrófico.”