Nenhuma guerra é ética. Mas todas as imagens da guerra são estéticas. Dois lados de uma mesma moeda. Para o filósofo francês Jacques Rancière, arte e política tem uma origem em comum, ou seja, ambas estão fundadas sobre um mundo sensível. Há tempos venho acompanhado imagens de guerra. Desde a primeira, por coincidência na Crimeia fotografada pelo fotógrafo inglês Roger Fenton entre 1854 e 1855, até a atual guerra entre Rússia e Ucrânia. Sigo estas imagens porque alguns historiadores da fotografia afirmam que é nas imagens de conflito que se encontra a raiz do surgimento do fotojornalismo. Com o tempo fui acompanhando como foi se desenvolvendo uma estética da fotografia de guerra e como ela foi se repetindo. Claro, guerras são diferentes, armas são diferentes, contextos sócio-históricos são diferentes. Mas é na estética que reside a construção de um significado e não no seu conteúdo. No final dos anos 1980 começou-se a se discutir na academia, na crítica e nos museus a estetização da miséria e da dor, a se questionar o valor das fotografias de conflito. E desde então esta tem sido uma discussão que preocupa muitos pensadores da imagem. Mas sempre me pareceu uma discussão mais acadêmica do que da vida real, ou seja dos fotojornalistas que estão lá olhando direto para o conflito.
Podemos começar com Susan Sontag, que decidiu criar regras entre ética e estética. Achar que havia uma divisão entre político e estético, como se isso fosse possível. E na esteira de seus colegas pós-modernos e pós-estruturalista nos incitou a desconfiar da imagem. Ela afirmava que a fotografia nos apresentava cenários de catástrofes, sem explicar as causas ou efeitos, por isso não acreditava na sua eficácia política ou ética.
Conceitos estes que foram discutidos anos depois por Susie Linfield em sua fundamental obra The Cruel Radiance (sem tradução em português): “Estou escrevendo contra as ideias pós-modernas e pós-estruturalistas e seus herdeiros e pelo seu arrogante e azedo desdém pela tradição, a prática e as ideias da fotografia documental”. Tempos mais tarde outra autora surge e se declara contra esta dicotomia criada por Susan Sontag. A pesquisadora israelense Ariella Azoulay, que em seu livro Civil Imagination (também ainda sem tradução no Brasil) afirma: “Pensar desta forma é uma armadilha. Toda foto é estética e toda foto é política. A criação ou a imaginação não são o oposto de político. E propõe: “Vamos falar de imaginação política”. E aqui retornamos ao Rancière, que em seu livro Tempos Modernos: arte, tempo e política escreve: “A ficção é necessária onde quer que certo senso de realidade precise ser produzido. É por isso que a política, as ciências sociais e o jornalismo se utilizam de ficções tanto quanto romancistas ou cineastas”.
Como se uma obra estética fosse livre e uma obra política seguisse regras de um manual. O que acontece é que as imagens nos incomodam. O que devemos ver em determinadas imagens? É preciso olhá-las?
Este mesmo tema também vai intrigar o filósofo e historiador de arte Jean Galard, que no livro Beleza Exorbitante afirma: “O que é feito da ética dessa atenção quando, através da imprensa, da televisão, das mídias eletrônicas, ela incide, de modo acidental ou deliberado, sobre as imagens da realidade sangrenta, terrificante, bárbara, da qual nós somos o público cotidiano?”. Em sua reflexão, Galard afirma que “numerosos espectadores expressam o mal estar que suscitam, que deveriam suscitar tais imagens em que a beleza, diz-se, combina demais com a dor”.
Continuando nesta linha, em 2015 o autor best-seller David Shields analisou mais de uma década de fotos de guerra de primeira página do The New York Times e lançou o livro War Is Beautiful (também sem tradução em português) e chegou a uma conclusão chocante: “O processo de edição de fotos do ‘jornal oficial’ por meio de uma estética bonita, heróica, nos força a enfrentar não só a cumplicidade da mídia em duvidosas e catastróficas campanhas militares, mas também a nossa. Este poderoso porta-voz da mídia, o Times, longe de ser um freio ao poder governamental, é na realidade um grande amplificador de suas forças sombrias em virtude da maneira como estetiza a guerra”. Ele divide o livro em temas: Natureza, Playground, Pai, Deus, Pietá, Pintura, Cinema, Beleza, Amor e Morte. Temáticas que o autor acredita que se repetem constantemente como uma estética de guerra.
Sempre me perguntei o porquê das fotografias de guerra remeterem iconograficamente a outras guerras, não só como memória, mas como uma estética de convencimento. Os refugiados sírios foram tratados de forma diferente nas imagens da maior parte dos jornais tradicionais – não em todos, ainda bem – dos refugiados da Ucrânia, especialmente pela imprensa norte-americana e europeia. Tantos sírios como os ucranianos estão fugindo de uma guerra. Pelas imagens os primeiros deveriam ser repelidos, os segundos acolhidos.
Acredito que devemos pensar na fotografia como uma signo carregado de ideologia e representações. Como diz o pesquisador Boris Kossoy em seu livro Os tempos da fotografia: “Ficções documentais: conteúdos imagéticos transferidos de contextos. Situação típica do processo criação/construção de realidades”.
Para esta coluna escolhi duas capas de revista: a Time, norte-americana, e a revista de jornalismo independente Internazionale, italiana. A primeira retrata uma fugitiva albanesa e ganhou o World Press Photo de 2013; a segunda uma refugiada ucraniana.
Para terminar esta coluna trago uma última declaração, desta vez da pesquisadora Martine Joly:
“A percepção das formas e dos objetos é cultural e como o que chamamos semelhança ou analogia corresponde a uma analogia perceptiva e não a uma semelhança entre a representação e o objeto: quando uma imagem nos parece semelhante é porque é construída de uma maneira que nos leva a decifrá-la como deciframos o próprio mundo.”
Talvez devamos refletir mais sobre as imagens que recebemos!