Ela era irreverência pura. Nascida há 101 anos e criada para reproduzir os valores da família tradicional, Dora Vivacqua tomou outros rumos. Não por acaso, a campanha “Meu corpo, minhas regras” se encaixaria à perfeição ao seu estilo de vida, apesar de ela jamais ter se expressado com essas palavras.
Capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, Dora exibia-se de calcinha e top feito de lenços em praias do Espírito Santo, no começo dos anos 1930, quando o termo biquíni nem existia. Não demorou a romper com a família para tentar a vida como artista na capital federal, o Rio de Janeiro.
Detalhe: embora pioneira na liberação do corpo, ela não se afinaria com outra campanha atual, a #ChegaDeFiuFiu. Dora, que primeiro se apresentou como Luz Divina, fazia de tudo para despertar a lascívia alheia. Dançava seminua, com duas jiboias – Cornélio e Castorina.
Causou tanto furor no circo que logo foi para o teatro de revista, o gênero teatral popular à época, marcado pelo apelo à sensualidade e à sátira política. A troca do picadeiro pelo tablado também envolveu mudança do nome para Luz del Fuego, inspirado em uma marca de batom argentino.
O talento nos palcos foi questionado mais de uma vez, mas o sucesso de suas apresentações era indiscutível. Logo ficou conhecida em todo o país. E não parava de ousar, inclusive em outros campos. Foi uma das primeiras brasileiras a pilotar um avião. E a saltar de paraquedas.
Não demorou a começar a escrever. No primeiro livro, o autobiográfico “Trágico Black-Out”, escancarava as contradições da família. Em tentativa de amenizar o escândalo, o irmão senador, Atílio Vivacqua, tratou de comprar todos os exemplares que encontrou pela frente.
Por esta época, ela passou a reunir amigos para praticar nudismo na praia de Joatinga, perto de sua casa, em São Conrado, no Rio. Entre os adeptos, Miss Gilda e Miss Lana, que se apresentavam como transformistas. “Um nudista é uma pessoa que acredita que a indumentária não é necessária à moralidade do corpo humano”, dizia Luz del Fuego.
Na defesa de suas ideias, tentou até criar um partido, o Partido Naturalista Brasileiro (PNB), que acabou não obtendo registro. Publicou um segundo livro, “A Verdade Nua”, onde também incluiu princípios do vegetarianismo. Queria ter um espaço próprio, para a prática do naturismo.
Não demorou a trocar sua confortável casa por uma ilha na Baía da Guanabara, a 15 minutos de barco da Ilha de Paquetá. Era uma concessão da Marinha de oito mil metros quadrados, a maior parte rochas e cactos, que Luz del Fuego transformou na primeira colônia naturista do país.
A Ilha do Sol, como Luz del Fuego rebatizou, chegou a ter entre os seus visitantes o ator Steve McQueen (1930-1980). Em julho de 1967, foi também palco do assassinato de Luz del Fuego e de um caseiro, crime cometido por homens atrás de uma fortuna que, na verdade, ela não tinha.
Inspirada nela e em suas ideias, a cantora Rita Lee compôs e gravou “Luz del Fuego” em 1975, música regravada por Cássia Eller 23 anos depois. Em Cachoeiro de Itapemirim, onde nasceu, Luz del Fuego hoje é reverenciada. Há duas semanas, em 21 de fevereiro, dia do nascimento de Luz del Fuego, a prefeitura da cidade lançou um selo em homenagem da atriz e bailarina. A ideia surgiu ano passado, quando se comemorou os 100 anos da filha outrora renegada pela família. Sinal dos tempos.