No ano em que León Ferrari completaria 100 anos, escolho a série Bíblia, de 1989, como objeto de reflexão. Com essas obras ele conclui sua ponte para o inferno, iniciada em 1965 com a obra seminal La Civilización occidental y Cristiana, estopim do seu embate com a igreja católica. Mais de vinte anos depois Ferrari retomou o tema religioso com mais de cem colagens realizadas com variantes híbridas, misturando textos e imagens da escritura sagrada com obras de Michelangelo, Dürer, Goya, Da Vinci, Rafael, notícias de jornais e gravuras orientais, de elegância formal e erotismo à flor da pele. Bíblia é o balizamento da arte total de Ferrari e com ela desencadeia vários comentários verticais sobre a Escritura Sagrada, que vão de Deus a moradores da periferia fuzilados pelo esquadrão da morte na ditadura dos anos de 1970.
Dezenas dessas colagens estão reunidas no livro Bíblia, considerado um dos marcos de pensamento transgressor, com apresentação do poeta Regis Bonvicino. As imagens xerocadas, opacas, trabalhadas em branco e preto lembram o processo gráfico dos jornais sindicais ativistas. Max Ernst define colagem como “o encontro de duas realidades distantes em um plano estranho a ambas”. Usando apenas a imagem de um pênis, que representa a Divindade fálica oriental Go-Shintai, do século 17, e uma gravura de anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr, de 1860, Ferrari reitera o pensamento de Max Ernst e cria uma obra de poética iluminada pelo contrassenso. Ele não se constrange com a moral comum dos preceitos seguidos pela maioria. Utilizar os textos da Bíblia é parte de seu pensamento anárquico, com a intenção de libertar a iconografia presa em livros e lhes dar vida justapondo e superpondo-a em trabalhos próximos à fotomontagem. O oriente e o ocidente coexistem no provérbio visual de Ferrari, um inventário encadeado por uma narrativa de textos e imagens que anunciam contrariedades. Ao confrontar diferenças de sexualidade em outras culturas ele chega a um trabalho desafiador. Apropria-se do desenho do Duomo de Pisa e o contrapõe à gravura Ukiyo-e, de 1910, e a Jeová, de Rafael Sanzio, século XVI, precedida do comentário bíblico: “Se a filha de um sacerdote for apanhada em estupro e desonrar o nome do pai, será entregue às chamas (Levítio21,9)”. A contra leitura que se instala em torno das obras dessa série se compõe de camadas de interpretações.
Com o desaparecimento de seu filho pela ditadura militar, em 1976, Ferrari deixa a Argentina e se fixa em São Paulo. Presença/ausência é o espectro que o acompanha no exílio e o atormenta até o fim de sua vida. Ferrari opera no vazio que existe entre a arte e a vida, desarruma o sistema, escancara a lógica da dominação com personagens coletivos que contestam, interrompem e colocam em xeque a história.
As indagações constantes sobre as Escrituras não se refletem apenas na arte, mas contaminam toda sua forma de viver. Em uma carta à sua irmã Suzana escrita em 1984 ele comenta: tirar do inferno o “pecado” ou, melhor, converter o inferno em um jardim cheio de flores, como o é em realidade, pode ser um bom caminho para limpar ou começar a limpar nossas cabeças dos versículos da Bíblia e seus congêneres.
Ferrari desobedece e rejeita todo projeto genocida do poder. Na década de 1980, vi alguns rascunhos dessa série em seu ateliê paulistano e me chamou a atenção que os personagens bíblicos flutuavam no alto das lâminas/folhas. Deus, santos, anjos pareciam denunciar o céu religioso como um lugar de vigilância da ordem, que se remete a Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir.
Em 2004 ele sofre uma nova investida da igreja e do sistema quando sua exposição Infernos e idolatrias, no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, é invadida por fanáticos católicos que incendiaram algumas obras. Na ocasião, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, entrou em confronto com ele chamando-o de “blasfemo”. Ferrari nunca negociou sua liberdade de expressão com nenhum poder estabelecido, seja da Igreja ou do Estado. Ao contrário, deu continuidade e alargou seu repertório de concepção catártica, ao desenvolver novos processos simbólicos contra os arbítrios.
Ferrari incomodou e muito pela forma livre com que sempre trabalhou, na contramão do circuito de arte, que costuma se alinhar ao sistema. Em 1989, depois de ser convidado a participar da coletiva Art in Latin América, na galeria Hayward de Londres pela curadora Dawn Ades, sua obra foi censurada e cortada da coletiva. Em 2013, como uma resposta a todas as censuras que sofreu ao longo dos anos, ele faz um pronunciamento definitivo: “A liberdade de consciência, o direito de crer em qualquer deus, ou em nenhum, implica também, para alguns, o direito de cada um estudar, defender, criticar, fazer arte, humor, cinema, teatro, literatura, com qualquer das crenças”.