Há muito que a ideia do artista isolado em seu ateliê soa como uma imagem antiquada para descrever o campo de produção das práticas contemporâneas, mas finalmente a documenta, considerada a mais importante mostra da arte atual, foca em coletivos de caráter ativista como um de seus principais eixos.
Depois de uma edição ousada, em 2017, que dividiu a parte expositiva em duas cidades, Atenas (Grécia) e Kassel (Alemanha), sob a direção do polonês Adam Szymczyk, a mostra agora tem à frente justamente um coletivo de artistas, o ruangrupa, sediado em Jacarta, na Indonésia. Em 2014, o grupo participou da 31ª Bienal de São Paulo, Como falar de coisas que não existem.
Parte do coletivo esteve em março passado em São Paulo, na Casa do Povo, onde realizou cerca de 10 encontros com 40 pessoas e grupos, do JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) à vereadora Erica Malunguinho, passando pelo Movimento Sem Terra e a líder indígena Jerá Guarani. Pela lista, não há dúvida que a documenta vai ter forte caráter ativista.
“Queremos criar uma plataforma de arte e cultura globalmente orientada, colaborativa e interdisciplinar que permanecerá efetiva além dos 100 dias da documenta quinze. Nossa abordagem curatorial busca um tipo diferente de modelo colaborativo de uso de recursos – em termos econômicos, mas também no que diz respeito a ideias, conhecimento, programas e inovações”, anuncia o ruangrupa no site da documenta.
Lá, aliás, já estão elencados 14 coletivos convidados para esta edição, originários de 13 países distintos: Alemanha, Quênia, Dinamarca, Palestina, Inglaterra, Hungria, Colômbia, Cuba, Indonésia, Espanha, Mali, Nova Zelândia e Bangladesh. Entre eles está o INLAND, uma agência colaborativa iniciada em 2009 pelo espanhol Fernando García-Dory, que fornece uma plataforma para diversos atores envolvidos na produção agrícola, social e cultural. Em 2018, Dory participou do início da criação de um jardim no terraço da Casa do Povo.
As temáticas desses coletivos são amplas e diversificadas, como o Project Art Works, um coletivo de artistas e criadores com sede em Hastings, no Reino Unido. Eles produzem e disseminam arte sustentada por abordagens radicais de neurodiversidade, direitos e representação, e são um dos cinco coletivos indicados para o prestigioso Turner Prize, agora em 2021. Isso mesmo, pela primeira vez são cinco coletivos indicados para o prêmio organizado pela Tate, que em 2015 já havia premiado um coletivo, o britânico Assemble.
Segundo Alex Farquharson, diretor da Tate Britain e presidente do comitê de seleção, em entrevista ao The Guardian, “o júri selecionou cinco coletivos notáveis cujo trabalho não apenas continuou durante a pandemia, mas se tornou ainda mais relevante como resultado”. Não deixa de ser estimulante a sintonia entre a decisão da Tate e da documenta quinze.
Outra coincidência entre as duas instituições de arte é a cubana Tania Bruguera, que em 2019 foi responsável por ocupar a Turbine Hall da Tate Modern, e que irá participar da documenta quinze com seu coletivo INSTAR, sediado em Havana (Cuba). O Instituto de Artivismo Hannah Arendt (INSTAR) surgiu como uma instituição de alfabetização cívica, em 2015, a partir de uma intervenção artística organizada por Bruguera, onde as pessoas leram e discutiram o livro de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, por 100 horas.
Desde o seu início, o INSTAR é pensado como um espaço democrático e horizontal, onde as decisões são tomadas por consenso. “Estamos interessados em reivindicar justiça social e direitos às vezes estranhos ao contexto cubano, como salários justos, um ambiente de trabalho que seja favorável à maternidade, apoiar projetos e artistas independentes, respeito pela liberdade de expressão e construir um projeto com pessoas que pensam diferente, mas quero fazer um país para todos”, diz o coletivo sobre seu trabalho, no site da documenta quinze.
Celeiro coletivo de arroz
Um dos conceitos que o ruangrupa está lançando para dar conta dessas práticas coletivas é o lumbung, um termo indonésio para celeiro comunitário de arroz. Ele será usado como princípio norteador de valores e ideias centrais da mostra.
Nada mais adequado, após toda a adversidade atravessada pelo planeta durante a pandemia, que a arte resgate valores comunitários e de respeito à natureza. É assim, ao menos, que se percebe a ideia do lumbung, “como um modelo artístico e econômico enraizado em princípios como coletividade, compartilhamento comunal de recursos e distribuição igualitária, que está incorporado em todas as partes da colaboração e da exposição”, de acordo com a descrição do site da mostra.
A proposta de compartilhamento e colaboração se materializa, durante o processo de criação da mostra, em Kassel, em um espaço denominado ruruhaus, a poucos metros do Fridericianum, o museu que foi a primeira sede da documenta, em 1955, e vem sendo ocupado por ela há cada cinco anos. O ruangrupa anunciou agora uma experiência digital e interativa da ruruhaus, que pode ser acessada em https://ruruhaus.de. Em junho era possível responder à questão: “Que tipo de living room uma cidade precisa?”.
Em tempos de distanciamento social, a questão soa até utópica, mas, afinal, ainda bem que a arte segue acreditando em novos mundos e, como parece ser o objetivo desta documenta, apontando quem está liderando esse movimento com práticas solidárias.