No Brasil, mais de 12 milhões de pessoas têm alguma deficiência física ou intelectual, o que corresponde a 6,7% da população segundo dados do IBGE. O número aumenta para 24% quando consideradas pessoas que apresentam alguma dificuldade em menor grau de locomoção, visão ou audição. Entretanto, ainda é pouco comum vermos esses corpos ocupando os palcos, ou as plateias, sendo os responsáveis pelas obras de uma exposição ou por admirá-las nos corredores dos museus, em especial quando saímos do eixo Rio-São Paulo.
“Não são as pessoas com deficiência (PCD) que não têm interesse em arte, são os produtores artísticos e culturais que não têm interesse em produzir um conteúdo que seja acessível”, afirma Moira Braga. Para a bailarina, atriz e professora, o processo é cíclico: se a produção artística não é acessível para PCDs, torna-se mais difícil delas desenvolverem interesse ou se tornarem artistas. O escultor Rogério Ratão faz coro e complementa que em qualquer caso as pessoas só gostarão das artes se forem estimuladas. “E quando temos deficiência, tem muito uma coisa das pessoas acharem que sabem o que é e o que não é necessário pra nós.”
Porém, o estímulo artístico não está em apenas sinalizar aspectos concretos de uma pintura, ou na transmissão das palavras de uma canção através da Libras. Deficiente visual, Ratão exemplifica com a acessibilidade nas artes plásticas: “Se você descreve A noite estrelada do Van Gogh, precisará explicar as pinceladas, o acúmulo de tinta e outros aspectos da obra”, pois é pela descrição que ele consegue compreender o quadro. Em seu caso, como pessoa que já enxergou, ele cria a imagem na cabeça, como quem lê um livro, mas compartilha que pessoas que nasceram cegas tendem a construir a obra em suas mentes a partir de outras referências sensoriais. Logo, se você descreve A noite estrelada apenas como uma cena de uma cidade noturna, com céu estrelado, árvores no primeiro plano e as casas na parte inferior do quadro, “a casinha que vem à mente é o mesmo desenho que uma criança poderia fazer na escola. Então quero entender qual é a casinha do Van Gogh, qual é a casinha do Cézanne, qual é a especificidade de cada artista?”.
É ao sinalizar as técnicas, o estilo e as características do pintor que se permite de fato o acesso à obra e não a um desenho qualquer. O escultor compartilha que em muitas viagens foi aos museus na companhia de seu irmão, para que esse pudesse descrever as pinturas mais detalhadamente. Em alguns casos, quando os museus tinham tempo limitado de visita frente a determinadas obras, permitiam que eles tomassem mais tempo, para que Ratão pudesse de fato admirá-las. Em outros casos, deparou-se com instituições que contavam com estruturas táteis que através de relevos o permitiam sentir os trabalhos, ou com espaços expositivos que liberavam horários específicos para que pessoas cegas ou com baixa visão pudessem tocar algumas esculturas e dessa forma melhor compreendê-las.
Em sua experiência profissional, Leonardo Castilho nos dá outros exemplos sobre o estímulo artístico. Seja na peça Cidade de Deus – apresentada em linguagem de sinais no Brasil e na França -, nas suas atividades como educador no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Slam do Corpo, ou nos shows de música – nos quais trabalhou com a interpretação em Libras -, ele buscou ir além da simples informação, permitindo que pessoas surdas (como ele) tivessem acesso àquela arte em forma e conteúdo. Como explica Castilho, a acessibilidade precisa ir além do protocolar. Não se trata apenas de incluir Libras ou audiodescrição, mas de transmitir a experiência estética que a arte propõe – o que envolve um refinamento dos recursos, um maior preparo sobre eles e uma consultoria constante com PCDs. “Os realizadores de eventos dificilmente pensam em públicos mais amplos quando estão concebendo o projeto e o orçamento”, explica. “Isso pode acarretar num sucateamento”, acrescenta Moira, que também tem deficiência visual, referindo-se a verba destinada aos recursos, que muitas vezes é menor do que a necessária. “O recurso de acessibilidade é uma possibilidade que você está dando de um espectador usufruir aquela obra, então se você faz de qualquer jeito quer dizer que você não se importa com esse público”, pontua.
De forma a garantir uma melhor transmissão de seus conceitos e propostas estéticas, a performer e videoartista Estela Lapponi agiu de outro modo. Nas primeiras oportunidades com recursos, os construiu em diálogo com os profissionais da área e, em um de seus últimos projetos, o filme Profanação, fez da audiodescrição não ferramenta de acessibilidade, mas linguagem, parte constituinte da obra. Porém, ela aponta que essa responsabilidade em alguns casos vai além dos produtores e artistas, está ligada às leis de incentivo e aos editais. “Penso que o que recebo ainda é muito pouco dependendo do projeto. Se não aumentar a verba, vai virar evento: é um dia só de recurso, porque não consigo tê-lo sempre.”
Seja bem-vindo ao mundo bípede
Esta postura, para Estela, tem uma raiz estrutural: vivemos em um mundo bípede. O termo está ligado ao conceito largamente utilizado pelo diretor, dançarino e coreógrafo Edu O., que não se restringe apenas à definição científica da palavra, mas à ideia estrutural de que todo corpo anda sobre suas próprias pernas, vê e ouve, desconsiderando outros corpos possíveis de existência – ou vendo-os como algo que precisa de conserto.
A experiência de João Paulo Lima corrobora com essa visão. Aos 26, ingressou no curso técnico para Intérpretes Criadores em Dança Contemporânea da Escola Porto Iracema das Artes em Fortaleza. Amputado de uma das pernas desde os 12 anos de idade, o artista conta: “Lá precisei me desvencilhar do corpo bípede. Por memória, já tinha me desvencilhado, mas socialmente não, porque acho que mesmo se você nasce com uma deficiência, é socialmente cobrado a ser bípede”. Para Moira também foi a dança que a permitiu ir além das possibilidades que entendia para si: “A gente começa a trabalhar o corpo e vai se entendendo melhor nos libertando das nossas crenças limitantes”.
Foi durante os estudos artísticos que tanto Estela quanto João passaram a se identificar com o conceito de “corpo intruso”, um corpo dissidente que causa estranhamento ao ocupar os diferentes espaços. Para eles, é por essa invisibilização da não bipedia que frequentemente não são vistos como simplesmente artistas, mas como artistas com deficiência, e assim “somente são lembrados na arte em datas comemorativas ligadas à deficiência, como a Virada Inclusiva, o Dia do Surdo etc.”, pontua Castilho. Para Estela, isso se dá porque “a inclusão é unilateral. Não existe relação de troca, pois não tem autonomia nenhuma do outro lado. Não tem desejo, é um objeto e é mercantilizado. Quem ‘inclui’ gera lucro, se põe bem na fita e isso corrobora para um pensamento da caridade – que é uma construção que alivia o Estado e que as pessoas privilegiadas se sentem garantindo seu espaço no reino dos céus”.
Por isso, como continuidade de sua pesquisa sobre o corpo intruso, a artista cria o manifesto anti-inclusão. “Quando Boaventura de Sousa Santos traz a ideia de que o pensamento ocidental é um pensamento abissal, que cria distinções, ele elucida muito bem a problemática da inclusão; porque existe uma linha que separa o mundo visível – a bipedia, a branquitude, a heterocisnormatividade – e o invisível”, explica. A performer acredita que o mundo em que vivemos – e a arte não está isenta dessa estrutura – se baseia na lógica visível e padrão. “A inclusão faz com que a gente queira cruzar essa fronteira. Só que a lógica que prevalece ainda é a privilegiada, e nós nunca vamos rompê-la se continuarmos pensando que é neste mundo que queremos estar”, explica.
Seja bem-vindo ao corpo intruso
Com hemiparesia (uma paralisia parcial), causada por um AVC aos 24 anos, Estela Lapponi se questionou por muito tempo sobre os significados de deficiência e inclusão, o que a fez transitar do teatro à dança, à dança-inclusiva, e por fim à performance e ao audiovisual. Assim ela se contrapôs à ideia de que deveria interpretar papéis com pouca movimentação, ou de que existiria um lugar específico para si de acordo com a sua “capacidade”. Em seus projetos, põe o corpo intruso em foco, como construtor de narrativas.
Para Rogério Ratão, o capacitismo se mostra claro quando alguns comentários insinuam que ele não cria as esculturas sozinho ou mostram a dificuldade de compreensão de que sua criação escultórica não se baseia no visual. O artista explica que parte do tátil para toda sua construção artística. “Toda a minha pele me dá alguma informação. Meu corpo é meu gabarito. Uso meus dedos e as minhas mãos como unidade de medida e a mim mesmo como modelo anatômico”, conta. E é essa importância do tátil que ele transmite para seus alunos – que enxergam ou não – nos cursos que leciona no MAM-SP.
João Paulo Lima também se viu frente à crença capacitante com os colegas do curso técnico, sendo constantemente questionado sobre sua capacidade de participar de determinadas aulas ou executar certos movimentos. Após iniciar suas criações autorais, ele também parte da ideia de corpo intruso e das relações que esse estabelece com o mundo e com a sociedade, seja em No’Tro Corpo – em que o artista leva sua prótese ao palco e a ressignifica ao encaixá-la de formas incomuns, contrapondo-se à pressão de usá-la -, ou em Devotees – espetáculo no qual mostra o corpo com deficiência como capaz de ser desejado e desejante.
Talvez, o que se esteja propondo nestes diferentes casos seja não mais uma inclusão, mas um outro ponto de partida, que não uma perspectiva bípede. Ou seja, a compreensão de que as identidades dissidentes são também construtoras de narrativas e conhecimentos. Como finaliza Estela: “Um corpo intruso vem pra poder modificar o sistema. Se ele não modifica, permanece intruso; se modifica, deixa de ser. Eu quero que o corpo intruso desapareça”.