Se durante a Idade Média “as artes têxteis gozavam de um importante lugar no panteon artístico”, foi na Renascença que elas passaram a ser vistas como práticas inferiores a outras formas de expressão – as então ditas belas artes. Na Revolução Industrial, essa narrativa se intensifica, ao incutir a essas práticas as ideias de feminilidade e reprodutibilidade. Seja pelas trabalhadoras da indústria têxtil ou as mulheres que bordam em casa, a prática é vista cada vez mais longe da genialidade de um artista e mais próxima a características de submissão. Como explica a curadora Ana Paula Simioni, que nos traz essa contextualização, é a essa imagem construída historicamente que Transbordar: transgressões do bordado na arte busca se opor.
“Justamente o maior desejo da mostra é o de provocar interrogações sobre essas noções atreladas ao bordado, a saber, as noções de que é uma prática feminina, dócil e doméstica”, explica Simioni. A mostra, em cartaz no Sesc Pinheiros até o dia 8 de maio reúne mais de 100 obras de 39 artistas, entre homens e mulheres, que revisitam os discursos de passividade, domesticidade e feminilidade atribuídos ao bordado – transgredindo-os -, e nos convidam a repensar o papel simbólico da prática e sua potência como expressão artística.
Sobre a fotografia de uma mulher negra, um bordado agressivo cobre sua boca, silenciando-a. A obra de Rosana Paulino, parte da série Bastidores, comunica a violência racial brasileira, especialmente sobre as mulheres. “A gente pode dizer que esse bordado é dócil, é passivo?”, questiona Ana Paula Simioni. No meio de uma das salas da exposição, nos deparamos com um lindo e delicado vestido, feito por Nazareth Pacheco. Porém, é ao nos aproximar da peça que vemos que o vestido é composto majoritariamente de giletes. “A ideia do vestido como aquilo que adorna a mulher, que é feminino e passivo, na obra dela é completamente revirada. É uma peça que se você vestir, terá o corpo inteiramente cortado.” A indumentária feminina clássica aparece diversas vezes na mostra, com diferentes conotações. Outro exemplo é o trabalho Zuzu Angel, que transformou o vestido em protesto sobre o desaparecimento de seu filho em meio a ditadura militar.
Para a curadora, essas obras explicitam bem uma característica comum à maioria dos trabalhos expostos em Transbordar: transgressões do bordado na arte. “São produções capazes de ao mesmo tempo encantar e incomodar. Encantar porque no geral são bonitas, trazem elementos plasticamente sedutores, mas ao mesmo tempo – seja por meio dos temas que abordam, seja da própria fatura – nos fazem pensar nos diversos modos de violência que nos rondam em nossas sociedades.”
Porém, não é de hoje que o bordado assume um papel crítico e essa visão sobre a prática não se atém apenas aos exemplos citados. “No século XX há uma retomada crítica desse tipo de produção. Não por acaso são mulheres nas vanguardas que retomam as artes têxteis num sentido completamente diferente, num sentido de incomodar e transgredir de fato essas hierarquias”, conta Simioni. Assim, em meio a obras que trazem narrativas sobre as ditaduras latino-americanas, as lutas raciais, LGBTQ+, de classe e de gênero, e nomes como Bispo do Rosário, Leonilson, Anna Bella Geiger, Regina Gomide Graz e tantos outros, a mostra propõe transbordarmos os limites que dividem o bordado da arte.
Para entender o assunto mais a fundo, a arte!brasileiros visitou a exposição ao lado da curadora Ana Paula Simioni. Assista ao vídeo:
Transbordar: transgressões do bordado na arte fica em cartaz até 8 de maio de 2021. Para a segurança de todos frente à pandemia de coronavírus, a temperatura corporal de todos é aferida na entrada e o uso de máscaras é obrigatório durante toda a visitação.
Reserve seu ingresso no site do Sesc Pinheiros.