Como os jovens veem o período de ditadura militar pelo qual o Brasil passou entre as décadas de 60 e 80? Esse é o recorte da exposição Estado(s) de Emergência, realizada pelo Paço das Artes. A mostra apresenta o tema pela perspectiva de artistas que nasceram na época da abertura política e redemocratização do País.
A exposição é apresentada na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro. Isso porque a instituição não tinha uma sede definitiva, tendo sido tirada da Cidade Universitária/USP em 2016 e funcionando no Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) desde então. Em setembro, finalmente, o Paço recebeu a boa notícia de que terá um novo lugar para chamar de seu. Cedida pelo Governo do Estado de São Paulo, a casa da instituição agora será o Casarão Nhônhô Magalhães, em Higienópolis. A inauguração contará com uma exposição de Regina Silveira.
Estado(s) de Emergência, a última exposição do Paço antes de se fixar na nova sede, tem curadoria de Priscila Arantes e Diego Matos, e se forma na intensa vontade que a curadora, que também é diretora artística, tinha de falar sobre o assunto nessa perspectiva. O recorte se deu ao pensar sobre o próprio trabalho do Paço que, segundo ela, “trabalha nas bordas”. O projeto já vinha sendo realizado há dois anos, quando Arantes convidou Diego para realizar a curadoria conjunta, por afinidades em pesquisas.
“Trabalhamos muito com resistência. Não só no sentido temático e político da palavra, mas micropolítico também. Ampliando a palavra: uma arte que resiste a entrar no mercado, que cria críticas em relação a pensamentos hegemônicos”, diz Priscila. Muitos dos artistas selecionados – como Lais Myrrha, Daniel Jablonski, Rafael Pagatini e Romy Pocztaruk – já passaram pela instituição em trabalhos para a Temporada de Projetos, realizada todo ano. Para Diego, o tema sempre o fascinou e o inquietou desde sua formação escolar. Ele já havia realizado uma exposição no Paço, pela Associação Cultural Videobrasil, com certa similaridade a essa. Ele pontua que a exposição também reflete outras, como o Estado de violência no Brasil. “A ideia de um Estado extremamente conflituoso e a ditadura talvez seja última sombra disso”.
A história de ditaduras ao redor do mundo, especialmente na América Latina, já tinha sido abordada em outras mostras ao longo da existência do Paço. As mais conhecidas talvez sejam as individuais Operação Condor, do português João Pina, realizada em 2014, e Migrações, do argentino Marcelo Brodsky, que aconteceu em 2016.
Diego conta que observa desde 2013 uma ascensão do assunto ditadura militar na produção desses artistas mais jovens. “Existe um termo que acho bastante interessante, que já vi, por exemplo, Márcio Seligmann também concordar e a própria Priscila. Uma ideia de desassombramento, porque são pessoas que, como não viveram ou não têm uma relação traumática direta necessariamente com o tema passam a olhar para isso de uma forma mais acurada, até como pesquisadores propriamente”, comenta Matos.
Para os dois curadores, o que leva artistas mais jovens a falarem sobre a ditadura, mesmo não tendo vivido sua pior fase ou ter tido algum contato direto, são vários fatores. Os mais evidentes seriam a crise institucional da Nova República, trazendo um desejo de entender como se chegou até isso, e a transparência trazida nos últimos 15 anos pelo governo. A última, que permitiu a realização da Comissão Nacional da Verdade e o acesso a vários documentos da época, oferecendo muito material para trabalharem.
O artista Daniel Jablonski, que apresenta na exposição o trabalho Diante do Aparelho, de 2016, decidiu homenagear os esconderijos de diversos militantes perseguidos na ditadura com sua obra. Apartamentos que serviam como moradia ou espaço para reuniões eram chamados de “aparelhos” na época. “Entre 2008 e 2011, quando fui morar sozinho, tive a ideia de fazer uma espécie de inventário de todos que parraram pelo meu apartamento pela primeira vez”, explica.
As pessoas posaram para o artista embaixo de um letreiro com o nome do apartamento, o qual ele intitulou “aparelho”, por uma razão histórica e afetiva. “Além da questão política, ele também tem uma questão demográfica muito interessante. O ‘aparelho’ foi o primeiro apartamento de muita gente, porque a maioria dessas pessoas que vivem neles tinham 20 e poucos anos mesmo. Estavam não só planejando uma ‘revolução’ contra o Estado, mas promovendo uma mudança de costumes contra o modelo de afeto, de sexualidade e de família que existia na casa dos parentes”, aponta Jablonski.
Já Fernanda Pessoa apresenta na íntegra o seu filme Histórias que o nosso cinema (não) contava. Premiado em vários festivais dentro e fora do Brasil, o longa é uma montagem de trechos de quase 30 filmes populares. Muitos, do gênero pornochanchada, da década de 70, demonstram alguma relação com o período ditatorial. Ela conta ter aprendido muito sobre como era o funcionamento da sociedade no longo processo de pesquisa e montagem do filme.
O longa também aborda, de forma muito forte, outras questões de opressão que existiam, como o machismo simbólico. Fernanda considera que o que mostra isso de forma mais explícita é uma analogia que aqueles filmes traziam entre o corpo feminino e o milagre econômico prometido pelos militares. “Eu fiz o filme justamente para tentar entender um momento que eu não vivi. Acho que o problema hoje é que ainda não estudamos direito o que foi a ditadura”, confessa.