[Este é o segundo texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título “A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens – Desafios Éticos para os Museus“, no primeiro texto, abordamos a Curadoria como sistemas simbólicos em conflito,
Resumo
Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.
2. Forma Estética e Contradição Social
Ulpiano T. Bezerra de Meneses *, em sua conferência sobre “Os museus e as ambiguidades da memória: a memória traumática”[1] argumenta que os museus devem problematizar a memória. Ele não apenas lembra, mas toma posição sobre quais são nosso modos de lembrar e de esquecer, eles gramáticas de esquecimento e lembrança que ainda que não se identifiquem o lugar de um tribunal, produzem este efeito sobre o público, que por isso mesmo, genericamente, sente julgado desde sua ignorância. Ele nos lembra as vicissitudes e conotações do verbo “esquecer”: o apagamento repressivo (o poder abafa a memória, como nas ditaduras), o esquecimento prescritivo (por pressão da sociedade), o esquecimento que é constitutivo da formação de uma nova identidade (quando os ganhos sobrepujam as perdas, como com os imigrantes); a amnésia estrutural (derivada das hierarquias sociais); o esquecimento como anulação (por saturação); o esquecimento como obsolescência planejada (típica do sistema capitalista de consumo); o esquecimento como silêncio humilhado (aquele de acontecimentos vergonhosos ou constrangedores).Todas elas conotações de imediata conotação clínica.
Por isso mediação não é conciliação harmonica, mas trabalho, ele mesmo contingente e passageiro, de dar forma e unidade aquilo que não se pode ainda reconhecer. O Estado e o mercado possuem gramáticas de reconhecimento para os seus interesses. Há aqui uma primeira divisão entre as gramáticas institucionais e comunitárias de reconhecimento. Há também uma segunda partição que é inerente ao percurso das experiências de reconhecimento, um percurso que envolve um sujeito em uma relação específica com o outro, segundo um determinado fim consoante a um determinado conjunto de meios. No reconhecimento não está em jogo apenas o quê é reconhecido, por exemplo, tal autor ou qual obra, mas também como, ou seja, em que série, em que lugar, ou qual enquadre se coloca uma imagem. A relação entre aquilo de que se fala e como se fala define o que estou chamando aqui, ainda que vagamente, de forma estética. Lacan tem uma afirmação sintética sobre o fazer do psicanalista que diz o seguinte:
“O que se diz fica esquecido por trás do que se entende, no que se ouve.”
É uma maneira de enfatizar esta operação de esquecimento do que está sendo dito, do que está sendo mostrado, em função do “contexto” no qual se diz. E o contexto inclui o agente e o destinatário da forma estética. O contexto é o museu, mas também seu público, são as pessoas concretas que o visitam, com suas histórias particulares. Quero sintetizar com isso que a mediação estética tem que reunir a relação entre os modos de dizer, de representar, de atuar, de instalar, com as pessoas que as produzem ou compram, que as realizam ou olham.
Pensando em críticos como Hal Foster e Didi-Huberman poderíamos dizer que este ponto de cruzamento se aproxima do que Lacan chamou de Real. Ele é o cruzamento que não cessa de não acontecer entre forma estética e contradição social.
Este ponto de cruzamento serviria como uma espécie de fio condutor possível para uma dada política curatorial. Aqui encontrei um segundo ponto de convergência entre minhas pesquisas psicanalíticas e certas reformulações do pensamento museológico. Isso porque a contradição social apresenta-se sempre segundo uma matriz específica que é a do sofrimento. Contradições sociais não são apenas representações abstratas de processos históricos desencarnados, mas elas habitam corpos. Cada corpo que sofre cria consigo afetos específicos, maneiras próprias de enunciar, de denunciar ou de pedir para que uma determinada experiência, até então vivida como sofrimento seja reconhecida. Isso frequentemente se aproxima da função política da arte, como modo de expressão e demanda de reconhecimento para determinadas experiências que até então permaneciam indeterminadas, silenciosas ou invisíveis. Por isso, dar visibilidade ao que permanecia invisível, colocar em forma estética ao antagonismo social, expressar, portanto, em uma maneira muito específica o sofrimento, é sempre o início de um processo político e psíquico e transformação.
Creio que é nesta direção que Freud dizia que os poetas e artistas andam na frente dos psicanalistas, no sentido de que existe uma política de sofrimento e que a pesquisa da arte sempre se adianta, fornecendo vocabulários, formas expressivas e narrativas para o mal-estar até então sem nome, o mal-estar informulado, o mal-estar sem forma.
“Estados informulados do espírito” esta é a expressão de Lévi-Strauss para designar aquilo que o xamã cura em uma determinada comunidade. Ele dá forma, oferece palavras, cria meios para que o informe adquira uma forma. Por isso o xamanismo envolve sempre uma forma de leitura (letras que o xamã sabe decifrar) e uma determinada forma de corpo (no qual o xamã se transforma para operar a cura).
Por isso podemos dizer que o ato museológico segundo é o ato de escolha, é o ato que sincroniza demandas sociais que clamam por reconhecimento e a história das formas, o debate das línguas, a concorrência entre as gramáticas expressivas (conforme a concepção estética ou poética que se tenha em mente).
Assim como o psicanalista que mantém sua escuta equiflutuante, aberta, suspensa de prejuízos e que se esforça por se separar de si mesmo e seus preconceitos, mas que, justamente é capturada por um momento de descontinuidade e corte atencional, a experiência do museu começa pelo deixar-se afetar e continua pelo ponto de captura, pela escolha, pelo chamado da obra.
Voltando a 33 Bienal. Poderíamos contrastar a série do artista paraguaio Feliciano Centurion, composta por objetos como travesseiros cerzido com dizeres, tais como “Luz divina del alma” e “Revela-me tua mensagem” com o trabalho de transparenciação, no qual um livro, cujo título é “Como imprimir sombras” ou um conjunto de moringa e copo é representado por arestas metálicas indicando que delineiam a forma, mas deixam vazio o seu preenchimento. Ambos evocam a intimidade, ambos recorrem a significantes e letras, mas o primeiro joga com a com preservação da imagem, separando-a brutalmente do contexto e o segundo com a subtração de elementos composicionais.
A contradição social dada por um mundo sem lugar para a intimidade, colonizado ironicamente por mensagens, legendas e manuais de uso é articulada segundo duas estratégias diferentes com a forma estética: no primeiro há um deslocamento do enquadre da imagem, no segundo há uma subtração do preenchimento e da cor, remanescendo e destacando a forma.
- Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.