[Este é o quinto texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título “A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens – Desafios Éticos para os Museus“, já abordamos
1] Curadoria como sistemas simbólicos em conflito,
2] Forma estética e contradição social
3] Formalização e Temporalidade
4] Arquitetura e Espaço: a Soberania das Imagens
5 Lugar, Voz e Linguagem: Empatia e Estranhamento
Lembremos que a empatia (Einfühlung) é um conceito desenvolvido por Vischer no contexto da teoria estética. Só depois disso ela foi traduzida ao inglês, como empathy, no contexto da psicologia de Titchner e reapropriada por Freud para descrever o tipo de laço ou de efeito que se espera entre psicanalista e psicanalisante. A empatia não é apenas um afeto pontual de afinidade e identificação. Isso é melhor descrito pelo conceito de simpatia, ou seja, caímos juntos em relação a um determinado objeto, gostamos das mesmas coisas, nosso gozo está referido ao mesmo traço ou ao mesmo tipo de letra.
Empatia é um percurso, um caminho, uma trajetória de leitura e escuta. Podemos distinguir quatro tempos desta experiência potencialmente transformativa:
- Ser afetado pelo outro, a ponto de que ele me convoca para assumir um ponto de vista que não é o meu e que desconfirma o semblante no qual eu me reconheço e do qual minha identidade depende. Aqui temos um tipo de experiência amorosa, uma maneira de fazer um, pelo traço comum, pelo mesmo.
- Mas assumir o ponto de vista do outro e retornar ao seu, descobrindo que eles são semelhantes ou convergentes isso é a simpatia ou identificação mimética, não é empatia. A empatia progride a partir disso quando além do ponto de vista do outro experimentamos o estranhamento que ele supostamente experimenta. Quando reconstruímos, como suposição e hipótese, o corpo que cabe nesta letra, o afeto que se produz a partir deste traço.
- O terceiro tempo da empatia advém quando o estranhamento e a não identidade que eu reconheço no outro, em relação a ele mesmo, convoca algo em mim. É a emergência da verdade deste estranhamento do lado do sujeito. Por isso o terceiro tempo da empatia é o tempo da diferença e do desencontro do outro, antes recebido e acolhido hospitaleiramente. Passamos do hospital para o hospedeiro, do amigo bem vindo para o alien perturbador.
- O quarto tempo da empatia é também a retomada do primeiro. Neste tempo devolvo algo ao outro, como que em retribuição pela transformação que ele desencadeou. É o tempo da resposta, que nunca poderá se esgotar em “gostei” ou “não gostei”, típicas do primeiro e do segundo tempo da empatia. Geralmente este quarto tempo é marcado por expressões tais como “mexeu comigo”, “não consegui esquecer” ou “tempos depois aquela imagem ficava voltando”. O quarto tempo é o tempo no qual a empatia dá luz à narrativa, quando tentamos passar adiante a boa piada recebida. Quando tentamos compartilhar aquilo que seria nosso, só nosso, conseguimos subverter a experiência de apossamento que caracteriza os modos mais simples de ver.
É o que a experiência recente do museu da empatia tentou realizar ao nos oferecer um repertório de sapatos, nos quais nos colocamos (segundo tempo), para escutar a história dos seus “donos”, (terceiro tempo), para enfim deixarmos para trás os sapatos e as histórias tendo nos transformados em outros repassando a experiência como estou tentando fazer agora, com este texto (quarta tempo).
No contexto contemporâneo das chamadas lutas por reconhecimento estamos às voltas com a demanda de inscrição de séries simbólicas em conflito: gêneros, raças, classes, línguas, culturas. Demandas de sofrimento que pedem pela inscrição no espaço público. Demandas dirigidas aos museus porque eles são e penso que deveriam continuar a ser, instâncias de sanção e de autorização de posições de fala. Mas, pelo exposto anteriormete, ser reconhecido pelo museu não é apenas ser catalogado, fazendo parte do acervo em seu modo próprio de lembrar e esquecer. A demanda precisa ser reconhecida não apenas em seus objetos representativos, mas também em sua gramática própria, vamos dizer assim, em seu pensamento “museológico” próprio. Por isso ter lugar, inclusive ter lugar de fala, pode ser inócuo se do outro lado não construímos um lugar de escuta. E ter um lugar de fala é fundamental, mas em certo sentido porque ele é só um lugar, um ponto de vista, que pode ser reduzido novamente a uma elite particular. O que se demanda não é o reconhecimento protocolar do lugar de fala, mas também da voz. A voz a que traz o corpo e o corpo que se transforma no percurso empático.
Aqui a confusão é frequente entre o expressivismo, que demanda a autonomia do singular, e a irredutibilidade da experiência, como reposição e completamento da identidade, que é uma estratégia decisiva das formas de corpo segregadas e a experiência transformativa que se pretende em relação ao poder modificador de mundos da memória, desde que articulada ao desejo.
Nos detalhes escondidos do corpo, presentes na obra de Sofia Borges, que nos traz meias caras, bocas recortadas em detalhes grotescos, percebemos a função decisiva da metáfora como impulsionadora e formadora das narrativas de sofrimento, logo de sua transformação.
É uma estratégia de certo modo oposta a de Maria Laet, que enquadra o litoral feito de linhas e rasuras que o mar impõe à areia de uma praia. Crítica dos muros e fronteiras? Alusão ao fato de que sem marés e fronteiras indeterminadas o que temos é fratura e quebra.
Se Sofia Borges trabalha com a narrativa narcísica do sofrimento, Maria Laet escolha a narrativa esquizoide. Na primeira está em jogo meu reconhecimento de identidade, propiciado por uma imagem que opera em espelho. Na segunda está em pauta minha experiência de unidade. Ser idêntico não é o mesmo que ser um.