Ao adjetivo obsceno são atribuídas ao menos duas possibilidades de etimologia. No latim, a palavra classifica aquilo que se opõe ao pudor, é grosseiro ou vulgar. Na semântica grega, há uma ligação ao teatro, em que obsceno é o que deve ficar fora de cena, por ser inapropriado mostrar aos espectadores — por exemplo, a encenação de sacrifícios. Em sua obra, o artista plástico russo Boris Lurie (1924-2008) parece sugerir a tradução visual e simbólica de um jogo etimológico em que ele usa a acepção do latim, como alegoria, e subverte a grega – ou seja, coloca “dentro de cena” — a obscenidade do Holocausto, do qual sobreviveu, e da sociedade de consumo, alvo constante de crítica em suas criações.
Railroad Collage (Railroad to America), colagem feita em 1963, não poderia ser mais emblemática desses dois vetores de sua prática, ao mostrar uma pin-up – uma típica modelo voluptuosa da publicidade dos anos 1960, uma objetificação mercantilizante do corpo feminino – em meio aos cadáveres anônimos de judeus assassinados pelo regime nazista.
A colagem e outros 43 de seus trabalhos — um conjunto que também inclui desenhos, pinturas e esculturas — estão em exibição na mostra Arte, Luto e Sobrevivência, em cartaz no Museu Judaico de São Paulo. E o jogo etimológico aqui sugerido não é a única chave de interpretação possível de sua obra, inédita no Brasil. Convidado em maio do ano passado pelo MUJ para ser o curador da exposição, Felipe Chaimovich iniciou a seleção das obras a serem exibidas por meio de catálogos da Boris Lurie Art Foundation e do site da própria instituição.
Mas Chaimovich afirma que passou a entender melhor as peculiaridades de sua produção após a leitura de dois livros de autoria do artista, ambos sem tradução para o português. O primeiro deles foi o diário In Riga — A memoir, que fala, por meio de memórias, mas também de elementos fictícios, de sua primeira viagem, em 1975, de volta à capital da Letônia, onde vivera infância e adolescência. O segundo, foi uma ficção, Casa de Anita, que se passa num apartamento em Nova York, com quatro dominatrices e escravos sexuais que vivem uma relação sadomasoquista consentida.
“É muito denso do ponto de vista dos relatos de cenas sexuais, de todos os jogos sadomasoquistas. E se vê que tudo isso é um elemento muito profundo do universo artístico dele, refletido em uma série de suas obras”, afirma Chaimovich. O curador diz que, a partir da leitura da obra literária de Lurie, começou a prestar “mais atenção nessa produção que fala do sadomasoquismo e a entender a proeminência da figura da mulher”.
“É algo que parte, na minha interpretação de seus escritos, da memória da própria mãe, que decidiu quem se separaria na família no momento em que o gueto de Riga, onde estavam, iria ser evacuado. Ela determina que as mulheres iriam para o campo de evacuação, enquanto Boris e o pai seguiriam para o campo de trabalhos forçados”, conta. “A mãe é esta mulher que decide o destino da família. Lurie vai elaborar a figura da mulher como sendo dominadora, que sentencia a vida e a morte.”
Nascido em 1924, em Leningrado, Rússia, Boris viveu até a adolescência em Riga. Em 1941, sua mãe, a avó materna, a irmã caçula e sua primeira namorada foram assassinadas num campo de evacuação. Lurie e seu pai, por sua vez, passaram pelos campos de trabalho forçado e de concentração, sobreviveram ao Holocausto e, libertos em 1945, emigraram para os EUA.
Em Nova York, Lurie iniciou a formação artística, em que elaborava “novas formas de lidar com a memória”, diz Chaimovich. Desse processo, nasce, em 1947, O Retrato de minha mãe antes do fuzilamento. Para o curador, a figura materna se torna obra-chave na equação artística que ele faz entre luto e criação. No fim dos anos 1940, conta Chaimovich, Lurie vai para a Art Students League, concebe “uma pintura figurativa gestual, bastante corrente nesse período”. Em 1951, viaja para Paris em 1951 e tem contato com artistas gestuais da época, uma produção bastante internacional, recorrente entre as duas cidades”, explica.
Já no fim dos anos 1950, prossegue Chaimovich, Lurie começa a fazer as colagens com as pin-ups e com lixo, “algo bastante relacionado com o neo-dada da cena nova-iorquina de contracultura de que ele participa”. O curador ressalta que o uso de lixo, como uma crítica à sociedade de consumo, “que enxerga a sua outra ponta, a do descarte”, não é peculiar de sua produção, mas um ponto em comum entre seus contemporâneos. “E o lixo aparece em várias das colagens dele. Um elemento de agressão e evidenciação do que é o ciclo do consumo”. É em 1960 que Lurie funda o No!art, um movimento contra os valores dessa sociedade.
Na virada da década de 1960 para os anos 1970, o artista inicia as obras com imagens sadomasoquistas. Na década de 1970, tem também uma produção escultórica, muitas vezes usando cimento, conta o curador. E um dos temas que perpassam vários momentos de sua produção é a presença da Estrela de Davi amarela, que ele, como judeu, era obrigado a usar no gueto de Riga. “E ele continua a usá-la em suas roupas, mesmo quando vai para Nova York”, lembra Chaimovich.
A figura da mulher dominadora se torna tema recorrente de sua obra, em vários contextos — das pin-ups da sociedade de consumo às dominatrices do sadomasoquismo. Citando os dois livros de Lurie, Chaimovich destaca que as únicas duas vezes em que ele usa a palavra rainha, nos dois títulos, é para se referir à mãe e à Anita, a personagem fictícia, dominatrix”.
“Há também na obra de Lurie uma certa elaboração do que são as relações sexualizadas entre quem é prisioneiro e quem aprisiona, por sua vez um tema bastante recorrente da psicanálise. E isso é, sem dúvida, uma das dimensões da obra de Boris Lurie, também. O filme O porteiro da noite (1974), de Liliana Cavani, fala exatamente disso. É um assunto costumeiro na arte, que vai elaborar a experiência do Holocausto. E ele também estava tratando disso em sua produção”, pondera.
Não faltam exemplos em Arte, Luto e Sobrevivência. Na colagem American (c. 1970), exibida agora no MUJ, em meio a pin-ups, vê-se uma mulher sendo torturada por uma soldado nazista, ostentando a suástica em seu uniforme. Há um incômodo e proposital diálogo entre essa obra e outra de suas colagens, [Untitled (Deliberate Pinup)], c. 1972-1973, em que Lurie inclui uma relação sadomasoquista num aparente recorte de revista.
Boris Lurie, como já foi dito, não vendia suas obras. Era contra a entrada dos artistas no mercado de arte, que ele considerava uma ação consumista. Mas fez fortuna no mercado financeiro, durante sua vida nos EUA, e deixou esse capital para que, após a sua morte, fosse constituída a fundação que leva seu nome, a fim de cuidar de sua obra na posteridade. Faz parte também desse patrimônio um conjunto de três mil obras que ele produziu e deixou como legado.
“A fundação tem procurado museus relevantes para propor essas exposições e financiá-las, como é o caso do MUJ”, conta o curador. “É, portanto, um trabalho muito consistente para projetar sua obra internacionalmente. Porque ele circulava bem nos círculos de Nova York, Paris e Israel, mas, como não vendia seus trabalhos, nunca teve coleções que o projetassem para a história da arte dominante”.
Chaimovich conta ainda que, nas visitas guiadas que já fez no MUJ, percebeu bastante interesse por parte do público, pela descoberta de um artista que tem uma elaboração muito singular da experiência do Holocausto e, ao mesmo tempo, da sociedade de consumo.
“Essa ponte que ele faz é uma descoberta impactante porque é um artista que não varre nada para debaixo do tapete e, sobretudo, explicita todas as formas de humilhação, de preconceito, que ele viveu, e isso se torna tema de sua produção, como por exemplo o uso ostensivo da estrela amarela. É uma forma de impedir o esquecimento e confrontar o público com a memória de coisas extremamente violentas”, conclui.
SERVIÇO
Boris Lurie – Arte, Luto e Sobrevivência
Até 9 de julho
Curadoria: Felipe Chaimovich
Museu Judaico de São Paulo (MUJ) – Rua Martinho Prado, 128 – São Paulo (SP)
Visitação: terça a domingo, das 10h às 19h (última entrada às 18 h)
Entrada: R$ 20 (inteira); R$10 (meia)