“Os arquivos, por si só, não têm memória. É com eles que você constrói memória”, afirma a pesquisadora e curadora Ana Pato. E neste processo de leitura, interpretação e significação de documentos e registros – tradicionalmente associado à prática acadêmica de historiadores e outros pesquisadores – os artistas têm papel fundamental, defende Pato, curadora da exposição Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura.
A partir desta constatação, a mostra em cartaz no Sesc Belenzinho, criada em parceria com o Memorial da Resistência, reúne trabalhos inéditos de nove artistas, concebidos a partir de pesquisas em diferentes arquivos públicos e privados sobre a ditadura brasileira. “Porque colocar em movimento uma documentação passa sempre por um processo de mediação”, diz a curadora. Os mediadores, neste caso, são os artistas e coletivos Ana Vaz, Grupo Contrafilé, O Grupo Inteiro, Giselle Beiguelman, Ícaro Lira, Mabe Bethônico, Paulo Nazareth, Rafael Pagatini e Traplev.
As obras, em variados suportes e linguagens, colocam em movimento informações e materiais que escancaram as violências perpetradas pelo regime militar ao longo de 21 anos em diferentes âmbitos da vida nacional. A prática artística surge – com suas peculiaridades – como prática historiadora, a partir de um desejo de tornar públicas histórias pouco conhecidas e de, muitas vezes, questionar a historiografia oficial. Pois, como ressalta Giselle Beiguelman em trabalho exposto na mostra, a memória é sempre uma construção. “O que você esqueceu de esquecer? O que você esqueceu de lembrar? O que você lembrou de esquecer? O que você lembrou de lembrar?”, questionam as frases escritas em neons.
A própria artista, na instalação Gaveta de Ossos, “lembra de lembrar”, através de fotos e áudio, do trabalho de reconhecimento feito com as ossadas na Vala de Perus, onde foram enterrados clandestinamente diversas pessoas assassinadas pela ditadura. Paulo Nazareth, em Inquérito, discute a criminalização dos negros a partir da leitura de inquéritos policiais encontrados pelo artista e transformados em áudios – em trabalho feito em colaboração com Michelle Matiuzzi e Ricardo Aleixo.
Em Escola de Testemunhos, o Grupo Contrafilé reproduz em fones de ouvido – situados em uma “mesa-lousa” rodeada de cadeiras escolares – relatos de ex-presos políticos e seus familiares pertencentes ao arquivo do programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da Resistência. O trabalho, assim como o de Nazareth, explicita um desejo da exposição de expandir o conhecimento sobre quem foram os personagens atuantes na luta contra a ditadura, como explica Pato: “Quisemos descolar um pouco desse imaginário de que a resistência à ditadura foi feita basicamente por homens, brancos, jovens, de classe média e estudantes da USP que entraram na guerrilha. O trabalho do Contrafilé traz uma visão mais ampla, que inclui o movimento operário, movimento de mulheres e mães da periferia, por exemplo”.
A expansão também da noção geográfica sobre a resistência à ditadura – para além do Sudeste ou de casos famosos como a Guerrilha do Araguaia – se dá no trabalho de Ícaro Lira sobre o Crítica Radical, movimento formado nos anos 1970 em Fortaleza. Atuante ainda hoje, o grupo teve uma trajetória multifacetada, com papel fundamental na luta feminista e passagens pela política institucional, pela guerrilha e, posteriormente, assumindo uma luta contra o voto e o capitalismo.
Em outra história pouco conhecida, Rafael Pagatini segue sua pesquisa sobre o papel das instituições culturais durante o regime militar, mostrando meandros das relações entre o governo e três instituições paulistanas: Sesc, MASP e Pinacoteca. Imagens de ditadores em aberturas de exposições impressas em tecidos, por exemplo, revelam como essas instituições ajudavam a dar certo ar de normalidade para o regime – “era como um escudo”, diz o artista –, já que mostras continuavam acontecendo e a arte seguia tendo seu espaço institucional, com aval do governo.
Desenvolvido por Traplev a partir de extensa pesquisa em arquivos – entre eles os que resultaram no livro Brasil: Nunca Mais, realizado clandestinamente por setores da sociedade civil durante os anos finais da ditadura (1979-1985) e que revelou uma série de crimes cometidos pelo regime – a instalação Arma da Crítica/ Orientação para a Prática apresenta dois grandes organogramas, um das organizações de esquerda e outro dos órgãos da repressão, situados em lados opostos da sala expositiva. O artista apresenta ainda um trabalho sobre o educador Anísio Teixeira, morto em 1971 após ser preso por agentes da ditadura.
Em duas grandes instalações feitas em tricô, Texto-Tecido-Teia, O Grupo Inteiro se utiliza de palavras encontrados nas apostilas de formação dos agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI). Os manuais, que serviam para orientar a repressão às organizações de esquerda, incluíam dicionários de gírias e expressões que poderiam ser necessárias nas sessões de interrogação e tortura. Logo ao lado, um vídeo da artista Ana Vaz , intitulado Apiyemiyekî? [Por quê?], aborda o genocídio do povo Waimiri-Atroari durante a marcha para o centro-oeste na década de 1970, quando terras indígenas foram invadidas para a construção da BR-174 e para a instalação de uma mineradora. Ilustrações criadas pelos indígenas sobre o período revelam a história traumática vivida pela população, remetendo-nos aos dias atuais.
Por fim, Mabe Bethônico pesquisa a relação das empresas de mineração com a ditadura militar a partir de um projeto de doutorado que descobriu sobre o assunto. A artista convidou a autora da pesquisa, Ana Carolina Reginatto, para lhe dar aulas sobre o tema e registrou o processo em vídeos. A obra final, intitulada Elite Mineral [Gabinete de Aprendizado] é outra que, segundo a curadora, nos remete diretamente aos acontecimentos recentes do país. “Com o trabalho da Mabe, fica mais claro o que está acontecendo em Brumadinho. Quando você olha o trabalho da Ana Vaz, entende melhor o que está acontecendo na questão indígena. Então nós vamos fazendo ligações que parece que não fizemos no Brasil”, diz Pato.
Revisionismo e aprendizado
Se o grupo de trabalho criado por Ana Pato com os artistas para pesquisar a memória da ditadura surgiu em 2018, foi a partir do início deste ano, já após a posse de Jair Bolsonaro, que o processo de produção das obras se intensificou. A temática entrou ainda mais na pauta do dia num contexto em que o presidente da República defende o regime militar, elogia torturadores e incentiva a comemoração da data do golpe de 1964. “Estamos vivendo um momento de revisionismo da nossa História oficial. Porque a ditadura militar está na nossa História oficial, não parecia ser uma narrativa que a gente tinha exatamente que comprovar. Mas as coisas mudaram”, diz a curadora.
“A impressão que eu tenho é que a gente é meio desconectado de quem somos, da nossa construção de nação. Então, para entender o que estamos vivendo, nada melhor do que olhar para o passado, aprender com a História para ficarmos mais conscientes do presente”, diz ela, reforçando o papel pedagógico de Meta-Arquivo – especialmente em tempos de negação de fatos históricos e disseminação de informações falsas. Não à toa, explica Pato, a mostra tem o subtítulo Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura. “Acho que a exposição é um lugar de aprendizado. Me parece que se estamos precisando voltar à realidade, de alguma forma o artista pode ser esse caminho do simbólico para que voltemos a olhar para o real.”
Ao tornar públicas histórias pouco reveladas, surge também a possibilidade de alguma reparação ou, ao menos, de lidar com as feridas do passado. “No Brasil, nós não fizemos um reconhecimento das nossas dívidas, da nossa história traumática. E os genocídios da população negra, indígena, isso permanece. É o próprio conceito de trauma, o passado que não quer passar, aquilo que está sempre voltando”, diz Pato. Nesse sentido, a curadora se refere a uma história que começa muito antes da ditadura militar, com raízes profundas que vêm desde a chegada dos colonizadores e do período da escravidão. Para ela, é só a partir desta complexidade histórica que se pode entender o atual “dualismo e cisão da sociedade brasileira”.
Em um vasto galpão do Sesc Belenzinho, a mostra se apresenta como um espaço de diálogo entre as obras, montadas entre estruturas metálicas aparentes e pequenas superfícies de madeira, permitindo a sobreposição das histórias apresentadas. Sobre o projeto expográfico de Anna Ferrari, a curadora explica: “Tem a ver também com a ideia de arquivo, para perverter a própria ideia das caixas. Eu queria poder ver qualquer trabalho de qualquer ângulo. Mas o ponto é esse: você nunca vai ter o ângulo perfeito, você vai sempre ter o outro lado”.
Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura
Sesc Belenzinho – R. Padre Adelino, 1000 – Belenzinho, São Paulo
Até 24 de novembro
Entrada gratuita
Fantástica essa exposição. Queria muito ver de perto. Tinha que rodar o Brasil todo. Parece que conseguiram fazer o que tantos historiadores não deram conta em diversas mostras expositivas sobre o tema. Salve a história nos nossos livros, com a tamanha competência dos historiadores brasileiros que já se dedicam tanto aos arquivos. Mas salvem também a arte, sempre disposta a dialogar com o passado e o contemporâneo.
Fiquei interessado. Tomara que a exposição rode Brasil afora e venha parar em BH. A (re) produção da memória e das narrativas requer cuidado e atenção com as formas de exposição. Encantado com esse trabalho.