A relação de Abdias Nascimento com a pintura, forma de expressão que adota de maneira mais intensa a partir de 1968 e durante os 13 anos em que viveu no exílio, constitui o núcleo central do terceiro ato do ciclo organizado por Inhotim em torno dele no biênio 2021-2023. Com mais de 180 obras e documentos, a mostra, inaugurada no último dia 18 de março, traz a público a potência da expressão plástica de Abdias, explicita conexões pessoais e poéticas com diferentes interlocutores no Brasil, Estados Unidos e África e reafirma sua permanente valorização da cultura negra como forma de luta. Essa teia que amarra militância e expressão se apropria de uma ampla gama de referências associadas a crenças, símbolos e ideogramas de matriz africana, com especial interesse pelos orixás, tema frequente de suas telas.
“Sortilégio”, título escolhido para a exposição, deriva de uma peça homônima escrita por Nascimento em 1951 e retida pela censura até 1957, cuja trama trata de racismo e apropriação cultural, elaborando uma série de discussões em torno do Candomblé. O texto indica o processo por meio do qual Abdias inverte a visão preconceituosa em relação à crença, passando a usar esses elementos de grande potência identitária não mais como forma de exclusão, mas como arma de reafirmação cultural e de crítica ao mito da igualdade racial que grassava no Brasil. Para ele é como se os orixás estivessem vivos. São ao mesmo tempo cosmologia, psicologia, teologia, como afirma em texto de 1975 para uma exposição que realiza na Philadelphia (EUA). Representa-os em telas de intenso colorido e plenas de elementos iconográficos diversos – que vão das vestes e atributos associados a entidades a elementos do cotidiano como carros e a bandeira norte-americana. São como “os heróis e mártires da luta contra o racismo”, lembra Douglas de Freitas, curador de Inhotim e responsável pela realização desse grande mergulho no legado de Nascimento, em parceria com a equipe do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), organização criada em 1981, quando retorna do exílio, e que preserva seu acervo e missão.
Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e presidente do Ipeafro, relembra que as artes visuais não eram um campo novo na trajetória do ativista. Ele só começa a pintar na segunda metade da década de 1950, incentivado por Sebastião Januário, também presente com obras na exposição. Ainda em 1950 funda o Museu de Arte Negra, na esteira do trabalho que já vinha desenvolvendo no Teatro Experimental do Negro, e em 1960 lança o polêmico concurso em busca de uma representação de um Cristo negro. “Ele não considera jamais a arte pela arte. Não é só o cubo branco que ele desafia, ao buscar um conceito de arte que extrapola a condição museal”, alerta ela. E nesse contexto a teogonia afro-brasileira desempenha um papel fundamental.
“Um exu, filho de Oxum”, assim resume Douglas de Freitas para falar dessa intensa relação dele com os orixás e suas potências simbólicas, transformadoras e afirmativas. Como Exu, Abdias abre caminhos. Serve de guia para as ações antirracistas que ganharam grande reverberação nos últimos anos. Mas o faz sob o signo de Oxum, orixá do amor e da prosperidade, representado em uma das telas mais conhecidas de sua autoria. Para iluminar essa relação o próprio espaço expositivo é trabalhado para enfatizar essas referências, cromáticas e arquitetônicas, como a grande parede de intenso amarelo ao fundo.
“Sortilégio” reverbera no tempo e no espaço. Apresenta uma solução de continuidade em relação às outras exposições do ciclo: a primeira destacando sua relação com Tunga, artista de grande presença em Inhotim e cujo pai era grande amigo de Abdias; a segunda, mais documental, abordando as experiências do Teatro Experimental e do Museu do Negro; e a quarta, a ser aberta no próximo semestre, que realizará um apanhado da trajetória do político, ativista e pensador panafricanista. Mas também se espraia em outras iniciativas implementadas pela instituição mineira, reverberando diretamente em iniciativas como as mostras “O Mundo é o Teatro do Homem” e “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, em cartaz até julho.