O recente (e crescente) sucesso de artistas negros no Brasil e no mundo tem levado o pintor Arjan Martins, 62, a uma ponderação. Para ele, a nova geração “ganhou muito dinheiro precocemente”, mas ainda precisa pensar seu projeto artístico e fazer uma reflexão sobre “as grandes galerias, os fortes braços do mercado”. Vencedor do Prêmio PIPA em 2018, objeto de um livro sobre sua trajetória, lançado pela Cobogó, no ano passado, Arjan acumula ainda em seu percurso artístico participações em bienais (São Paulo, Dakar e Mercosul, entre outras), celebra 20 anos de carreira em 2022 – sua primeira individual, em 2002, no Museu da República, é o marco zero – e vem colocando, para si a mesmo, pergunta que faz agora, em entrevista à arte!brasileiros, a seus jovens pares:
“Vocês não gostariam que sua produção migrasse para um colecionismo igualmente negro? E isso levanta outra questão: será que já criamos um colecionismo negro? Temos grandes colecionadores negros no Brasil, colecionando artistas negros?”, indaga. “Vi que minha produção foi muito bem acolhida em Nova York e outros lugares nos EUA. E, para minha surpresa, eu a vi chegando a outras camadas sociais, a afro-americanos, colecionadores. Isso é genial. Quando vamos vislumbrar um afro-colecionismo brasileiro? Isso é quase uma intenção utópica de público alvo para mim.”
Representado desde 2016 por A Gentil Carioca, Arjan está em cartaz na filial paulistana da galeria até sábado (12/11), com obras inéditas, na individual Hemisfério 1. Na capital fluminense, o pintor está presente em três outras exposições: até 22 de janeiro, no Museu de Arte do Rio (MAR), ele é um dos artistas selecionados para a itinerância da 34ª Bienal de São Paulo, com o trabalho Complexo Atlântico (Oceano), que já havia apresentando na própria mostra paulistana, em 2021. Já no Centro Cultural da PGE-RJ, Arjan participa da coletiva Passado Presente: 200 Anos Depois; e no MAM Rio tem uma de suas obras expostas em Atos de Revolta: outros imaginários sobre independência, em cartaz até 26 de fevereiro de 2023.
A partir de 19 de novembro, pela segunda vez, Arjan marcará presença em Inhotim, para onde levou, em maio, sua Instalação de Birutas (2021), no contexto do programa Acervo em Movimento. Desta vez, ele levará a Brumadinho um trabalho de 2019, a ser exibido na Galeria Lago, dentro da exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, fruto da parceria do instituto mineiro com o Ipeafro. Juntas, as duas instituições vêm pesquisando a obra do artista e ativista Abdias Nascimento.
Diferentemente de seus jovens pares, Arjan não viu nada acontecer “precocemente”. Nascido em Mesquita, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Argentino Mauro Martins Manoel fez o ensino básico na Federação Nacional das Associações de Benefícios (Fenaben) e na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), atual Fundação Casa. Fosse em casa – criado pela mãe, após perder o pai com apenas 2 anos – ou naquelas instituições, ele não tinha qualquer contato com arte, tampouco se sentia inclinado para o ofício, como costumam relatar muitos de seus colegas.
Arjan começou a trabalhar ainda adolescente. Foi barman, office-boy, assistente de pedreiro. Na passagem para a vida adulta, conta o pintor, ele começou a frequentar, apenas como ouvinte, algumas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, que se tornou um “ponto de interesse, de escuta” para ele. Era a segunda metade dos anos 1980 e, em 1990, Arjan iniciou alguns cursos na EAV, agora pagos, com a venda de pães que fabricava em casa.
“Fui parar lá [na EAV] com certa naturalidade, por assim dizer. Quando ainda era viva, minha mãe me apresentou fotografias em que estávamos minha irmã, uma prima e eu, subindo a rampinha do Parque Lage. Eu teria ficado muito feliz se esta imagem pudesse ter sido a capa do livro [Arjan Martins, organizado por Paulo Miyada] publicado em 2021 pela Cobogó, até porque, ela detecta já ali uma convivência com este outro Rio de Janeiro, que é uma cidade multipartida”, conta.
Ainda a propósito do Rio, o pintor se lembra de um amigo, nascido em Marechal Hermes (bairro da Zona Norte carioca), que já vive há alguns anos em Nova York, mas que atravessou o Túnel Rebouças para a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, somente aos 17 anos. “Foi ali que ele, como eu no Parque Lage, viu outro Rio de Janeiro. Ele entendeu que havia outro país dentro de uma cidade”, pondera.
As primeiras experiências de Arjan como artista tiveram início em coletivos, “fazendo intervenções na arquitetura de alguns lugares, práticas bem livres com o desenho, como fazer sulcos numa parede”, conta. Ao mesmo, ele passou a visitar exposições com mais frequência.
“Ainda tinha um olhar distanciado, ao mesmo tempo fazia um contato mais pungente com a arte, com as provações que dali surgiam, as fricções. Surgia também aí uma necessidade de, como jovem artista, encontrar um repertório próprio e compartilhá-lo com os pares. Alguns dispositivos recorrentes em minha obra, como uma rosa dos ventos, a simulação dos planisférios e, a partir daí, um mergulho na busca por um Brasil além da história oficial.”
Entre os anos 1990 e o início da década seguinte, participou de coletivas diversas, entre o Rio de Janeiro, sobretudo, e São Paulo. Sua primeira individual, intitulada Desenhos, aconteceu em 2002, no Museu da República. Ainda no Parque Lage, afirma ter ouvido, “de algumas vozes”, que a pintura havia acabado. “Era algo muito duro para um jovem estudante, pesquisador, porque eu não entendia muito bem essa informação. Foi aí que eu quis apostar ainda mais na pintura, eu revalidei a experiência pictórica. É difícil? Ótimo, adoro o difícil. Essas definições são ditaduras provisórias”, diz.
Porém, de alguns professores da EAV – Fernando Cocchiarale, Elizabeth Jobim e Paulo Sérgio Duarte – afirma ter conseguido “uma honrosa atenção sobre sua pesquisa”. Eles incentivaram o artista a fazer uma individual no MAM Rio, ideia abraçada anos depois pelo então curador do museu carioca, Luiz Camillo Osorio. Nascia Américas, realizada em 2014, com curadoria de Duarte, que à época escreveu que o tema da exposição era “o da alteridade, o da solidariedade étnica”. Ali, já apareciam elementos que viriam a ser recorrentes em sua produção, como caravelas, rosas dos ventos e a cartografia, entre outros, alusões a questões caras ao artista, como migração e escravidão.
A propósito de Américas, as experiências que Arjan fizera antes com estruturas anatômicas o ajudaram a “migrar para a representação do corpo negro”. O pintor conta que encontrou, num sebo, fotos em preto e branco, “provavelmente da década de 40, de pessoas anônimas, senhoras numa beira de estrada, vendendo frutas numa bacia”. Ele afirma que aquelas pessoas “muito se assemelhavam a parentes antigos, ancestrais, traziam uma atmosfera boa ao lugar”. E lembra:
“Foi aí que tive um insight de colocar aquelas senhoras nas telas. Pensei que estava a fim de falar daquele corpo, descoberto num antiquário, que não traz a sua identidade, e tampouco a do fotógrafo. Eu aceitei a individualidade deles, o anonimato, e daí começou a surgir a ideia de uma figuração que não é figurada. Não vai para o hiper-realismo, vai tender sempre para uma abstração, a friccionar a experiência da figura. Uma experiência de pintura em que podemos falar de Francis Bacon, Willem de Kooning e outros autores cuja abordagem da figuração é a partir de outro lugar, evita certas convenções”, explica.
Mais recentemente, conta o pintor, ele buscou interpretações distintas sobre a construção do retrato. No ano passado, na mostra Descompasso Atlântico, n’A Gentil Carioca do Rio, ele diz que buscou “passar algo histórico”, nas representações de João Cândido (o Almirante Negro), e de Luiza Mahin, líder da Revolta dos Malês (1835), na Bahia. “Foram obras em que trouxe uma exaltação quase classicista, respeitosa, às duas figuras. Deixando claramente definidos quem eram os personagens”, diz.
Já na exposição Enciclopédia Negra, que aconteceu também em 2021, na Pinacoteca, em São Paulo, Arjan foi convidado para retratar Zumbi dos Palmares. “Mas aí eu abstraí sua figura. Nunca tive de perto um retrato preciso da figura dele. Portanto, isso me deixou um pouco confortável para poder abstrair. Claro que ela pode ser bem entendida ou criar um ruído visual na retina de algumas pessoas, mas estava sinceramente ali uma ideia de desfiguração, em que se reconhece ele, respeitando um ícone histórico.”
Quanto às cartografias, explica o pintor, vieram da necessidade de olhar para o Brasil e entender de que perspectiva ele é visto historicamente. “Eu, quando jovem artista, não via ninguém arriscando esse lugar. Logo vi que iriam transbordar dali muitos problemas, muitas questões. Isso foi naturalmente sendo incorporado em algumas obras, um olhar que não perde contexto histórico, mas, ao mesmo tempo, uma agenda ligada ao presente, que não é o lugar do coitadismo, é outra proposta. O Atlântico ainda está bastante desajustado e complexo, e é uma fonte preciosa de conteúdos para minha prática.”
Com obras presentes nos acervos do MAM Rio e da Pinacoteca, Arjan se prepara agora para participar de mais uma edição da feira Art Basel Miami, nos EUA, onde apresentará a obra Isto aqui é o Capricórnio. Ele afirma que é “interessante” ser um artista ser reconhecido, mas “também quitar seus boletos”. Sente-se um artista já consagrado? “São muitas variáveis que devem ser equacionadas. Meu perfil, acredito, foi o último: preto, hétero, essencialmente pintor. Foi uma múltipla vitória. E, apesar de ser um pintor hétero, meu trabalho está tratando de gênero também, todo o tempo. Embora minha pesquisa, ainda hoje, tente evitar qualquer resquício de sectarismo”, conclui.