Adentrar no mundo de Jeanete Musatti, artista emblemática das obras de pequenos formatos, é reforçar a ideia, aparentemente óbvia, de que colecionar é estar perto das coisas que nos dão prazer. O conjunto de 65 obras que compõem a exposição Corações Prensados, na galeria Bolsa de Arte, foi realizado com objetos guardados ao longo da sua vida em sete gavetas de tipografia de formato 60×20, uma espécie de reserva técnica de seus achados. Com esses objetos díspares ela constrói uma obra sólida, personalista, sob influências múltiplas. Delicados, os pequenos cenários realizados dentro de caixas transparentes estão perfilados nas paredes da galeria, conduzindo o visitante a admirar cada um deles como um take de um filme sem sequência lógica. Individualmente, cada um tem vida própria e se constitui numa obra em si. A ficção da artista informa sobre circuitos psicológicos, saberes marginais, sonhos escapistas que se podem chamar de contraculturais. Tudo em oposição ao óbvio e às zonas do sistema que autorizam a voz, como define Foucault.
Colecionar é como contar, contar, mas com a intenção de deixar tudo sem solução, estimulando novas narrativas. O fio condutor de sua produção é a singularidade que se move no contrapelo da sociedade contemporânea, onde tudo acontece rápido e simultaneamente, sem tempo para uma observação mais detalhada. O conjunto de caixas se movimenta entre o caos e a ordem, entre a dispersão e a junção. Há um equilíbrio de forças entre os objetos e as imagens fundantes que balizam a passagem do tempo. No conjunto, os trabalhos pulsam como organismo vivo não permitindo que o espectador permaneça indiferente. Ao contrário, ele atua como narrador porque é impossível permanecer calado diante de uma das caixas sem tecer comentários. A singularidade dessa coleção de achados consiste no caráter aparentemente anárquico do material armazenado. Esse museu particular, repleto de bugigangas ou de joias valiosas, adquire um sentido museológico ao transformar tudo em obra de arte. A persistência dessas relações artísticas alcança variações de grande dramaticidade em algumas das cenas.
Personalidade marcante, Jeanete Musatti adotou os pequenos formatos num momento em que o circuito de arte e as bienais privilegiavam obras de grandes dimensões. Opondo-se à ideia de divertissement ela adota uma pesquisa continua, quase como um frenesi diante de algo encontrado. Os achados transcendem o círculo familiar, ganham outros territórios, são lançados na arena e observados por corpos alheios, como voyeurs.
Uma das obras emblemáticas desse momento de pandemia e reclusão é Inversão térmica planeta, 2020, um pote transparente de guardar mantimentos, onde um mapa-múndi impresso em papel foi amassado, ressignificado e aprisionado como nós. Ao lado, um outro recipiente idêntico exibe um mapa celeste, igualmente amassado e colocado preso, contrariando a ideia de infinito e liberdade espacial. Jeanete Musatti transita nesse vazio e se apropria desses universos referenciais para representar o desmonte atual.
No conjunto, esses trabalhos funcionam como ativadores de memória que naturalmente inserem o observador na história de cada peça. A singularidade da contribuição dessa série é o caráter polimórfico de seu material. A insistência nessas relações artísticas se entrelaça nas peças já prontas, como o acordeão em miniatura, presente de seu genro, ou em outras que serão trabalhadas sutil ou exaustivamente para compor narrativas utópicas.
Cada achado pode se transformar numa matriz criando rizomas sem hierarquia de procedência ou valor de mercado. Em seu ateliê, repleto de objetos, pode-se encontrar muitos deles adquiridos na rua 25 de março em São Paulo, que ela considera um ótimo local para garimpar peças incomuns. O que se reconhece na obra de Jeanete Musatti é uma vontade enorme de contradizer os destinos sociais, exercida por decisões básicas de sua vida, como morar em uma fazenda no interior onde está agora durante a pandemia com seu marido, o empresário e colecionador Bruno Musatti. Ou a decisão de se mudar para Londres com toda a família em certo momento de sua vida, quando as filhas ainda eram crianças. Compor a vida pessoal com o seu mundo artístico, quase miniaturizado, faz parte de sua aventura poética. A reivindicação de sua história pessoal vivida numa família de artistas (pertence à dinastia Leirner: Felícia, Giselda, Nelson, Jac, Sheila, Bettina e outros) é um ganho especial dessa artista que funciona como inventora de improvisações de leituras enigmáticas. Desse universo disperso e contraditório, de discursos e cenários, ela vivenciou arte, ouviu, tocou instrumentos e fruiu várias formas de saberes a cada momento de sua vida.