Ao sair do aeroporto e se dirigir ao centro da cidade de Belo Horizonte, pela Av. Presidente Antônio Carlos, um prédio ao longe chama a atenção. As cores vibrantes de um mural de 1365 m², na empena do edifício Chiquito Lopes, são visíveis em grande distância, e de vários pontos do centro o grafite pode ser visto perfeitamente. Trata-se de Híbrida Astral – Guardiã Brasileira, obra produzida por Criola em 2018, durante uma das edições do Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte (CURA).
Hoje, uma disputa judicial decide se o mural deve ou não permanecer no prédio. Um dos moradores é contrário à manutenção da pintura e, desde sua produção, exige o apagamento da mesma. Nesta semana, o processo se tornou de conhecimento público, gerando discussões para além do edifício.
Desde o abaixo-assinado, criado pelo CURA em defesa da obra, até comentários preconceituosos sobre a temática e iconografia do mural, o caso suscita discussões sobre os limites entre o interesse público e o privado e nos mostra, mais uma vez, demonstrações explícitas de racismo nas redes sociais.
Entre andaimes e tinta
Em 2018, Criola participava do CURA. À artista mineira – hoje responsável por murais em várias cidades do Brasil e em Paris –, foi destinada a empena do edifício Chiquito Lopes, na Rua São Paulo, centro de Belo Horizonte.
Neivaldo Ramos, síndico do prédio, conta que a proposta do festival surgiu em setembro de 2018. “Tivemos dúvidas no primeiro momento, porque a empena estava bastante degradada, em razão de eventos climáticos. A preservação e conservação demandavam obras necessárias, cujos recursos eram elevados”, explica. Porém, o festival comprometeu-se a fazer a recuperação da fachada cega do prédio, isentando os moradores do valor da reforma. Com isso, a proposta foi levada ao Conselho Consultivo do Condomínio e aprovada de forma unânime. Então, foi comunicada aos demais moradores. “À princípio, o nosso maior interesse era a recuperação física da empena; mas a ideia de participar do projeto – já conhecido na cidade pelas versões anteriores – empolgava a todos, tanto pela visibilidade e valorização, quanto por participar de um evento de natureza cultural”, conta Neivaldo.
Em outubro de 2018, a obra teve início, e foi então que um morador se opôs à continuidade do mural. Frente à situação, o síndico solicitou uma Assembleia, na qual 55 dos 56 moradores se manifestaram em favor da continuidade do mural. Ainda em 2018, o condômino insatisfeito moveu um processo contra o edifício, para que a obra fosse interrompida. Atualmente, o mesmo processo diz respeito ao apagamento do mural.
O festival de arte urbana, bem como a Criola, se opõe ao apagamento da obra. “É um mural público, voltado pra rua, não está dentro do prédio, ou dentro do apartamento do morador. São tempos estranhíssimos nos quais podemos ser surpreendidas por uma decisão desfavorável à obra e achamos que não cabia mais o silêncio. Por isso, tomamos a decisão de publicizar esse processo”, explica Juliana Flores, uma das idealizadoras do CURA.
Assim, apesar de o processo existir há quase dois anos, foi na última semana que ele se tornou amplamente conhecido. O Circuito Urbano de Arte divulgou um abaixo-assinado em defesa do mural (acompanhe aqui) e explicitou o caso nas redes sociais. “Nossa ideia é anexar o abaixo-assinado aos autos do processo, porque nosso argumento é que se trata de uma obra de arte pública. Essa obra agora é da cidade de Belo Horizonte. Então, o que queremos mostrar para o juiz é que o interesse público deve prevalecer ao privado”, defende Juliana Flores.
Em conversa com o síndico, o morador que moveu o processo afirma que a obra é uma “decoração de gosto duvidoso” e parte da Lei nº 4591/1964, na defesa de que a mudança na fachada deveria ser um consenso unânime entre os moradores. Do outro lado, a defesa da obra baseia-se no Código Civil de 2002 e na votação majoritária sobre a manutenção do mural (prevista no art. 1341). Porém, para Criola, artista responsável pela obra, o resultado vai além de uma simples volta à pintura cinza da parede. Em consonância com o restante de sua produção, a obra traz referências à cultura afro-brasileira e indígena e, por isso, para a muralista, seu apagamento tem um fator simbólico: “Nos matam fisicamente e nos matam simbolicamente através do apagamento da nossa cultura e de tudo que gira em torno dela. O gosto estético é uma construção cultural e social e que é moldada massivamente pelo imaginário do colonizador”.
Quem é Híbrida Astral – Guardiã Brasileira?
“Esse mural busca fincar no meio da cidade a lembrança das nossas raízes afro-indígenas. Estamos imersos numa crise enquanto sociedade que é externa e interna. Os hábitos que nos fizeram chegar até aqui não nos levarão mais muito longe, estamos indo em direção ao auto-extermínio”, defende a artista. O trabalho é parte da série de grafites Híbrida Astral, na qual Criola se dedica a retratar as “híbridas”, personagens multidimensionais que ao honrarem a natureza e os animais, os mimetizam, e que fazem parte de mundo simbólico, onde a disputa por superioridade (entre humanos e natureza, entre gêneros e etnias) já foi superada.
Com os atuais ocorridos relacionados à degradação do meio ambiente e à violência (moral e física) contra minorias, a obra se mostra cada vez mais atual e a temática de extrema importância. “Os povos ancestrais tem uma sabedoria totalmente enraizada na comunhão com a natureza, sentindo-se parte dela e não sugando tudo que ela nos oferece. Para além disso, esse mural [do edifício Chiquito Lopes] aborda o resgate do feminino, da honra às mulheres como fiéis detentoras do portal que nos possibilita chegar no planeta Terra. Não é à toa que tanto às mulheres como os povos afro-indígenas tem sido massacrados, a sociedade precisa se curar desse egoísmo colonizador em achar que tudo que difere de si precisa ser dominado”, conclui Criola.
Em meio às redes sociais
Foram essas simbologias e reflexões que geraram alvoroço nas redes sociais ao que o caso tornou-se público. Enquanto no perfil de Instagram da artista podem ser lidos comentários de apoio a ela e de defesa do mural, nos comentários das notícias e nas redes sociais dos veículos jornalísticos, outro tipo de manifestação também é comum: “O morador tem razão em não querer uma pintura com energia pesada desse jeito”, “Tem que apagar sim, essa obra demoníaca!!!!”, “Desenho do DEMÔNIO”, “Esse desenho é horrível, nada a ver com cultura”, “Realmente parece imagem de centro de macumba. Horroroso”.
Para Juliana Flores e Criola, essas opiniões têm um fundamento racista perceptível, partem de um preconceito com religiões de matriz africana. “É a opinião de uma minoria e, infelizmente, acho que está muito ligada ao racismo. Dentro de algumas religiões, há pessoas que entendem elementos religiosos de matriz africana como coisas do diabo, por isso não conseguem entender a manifestação artística como uma manifestação cultural”, diz a idealizadora do CURA.
“Nós vivemos momentos de muita intolerância, que eu acho que vão passar, porque isso é ignorância, desconhecimento e desvalorização da cultura brasileira. A nossa cultura é diversa, quanto mais a gente abraçar essa diversidade, mais ricos seremos culturalmente”, complementa Juliana Flores.
Ao lado disso, aparecem comentários sobre o corpo nu representado em Híbrida Astral – Guardiã Brasileira e o útero desenhado ao lado da figura. As demonstrações de nojo e ojeriza frente ao corpo feminino, para a Criola, são uma reflexo da misoginia corrente na sociedade.
Ela compartilha que essa não é a primeira vez que se vê diante de casos de racismo em decorrência de sua obra, mas que segue tranquila pelo apoio que tem recebido daqueles que admiram seu trabalho e entendem o papel da arte no combate as preconceitos. A organização do CURA vê da mesma forma, e reafirma seu compromisso em ter artistas indígenas e negros em suas edições, para que esses possam se expressar e levar ainda mais representatividade às ruas (leia nossa matéria sobre a última edição do evento).