“É impensável não se posicionar naquilo que nós fazemos. Se eu não me posiciono naquilo que eu faço, então minha posição é de poder e de privilégio tão grande, que eu não preciso me mencionar, e sendo um exercício de poder, então é um exercício colonial”, defendeu a artista Grada Kilomba em debate na Pinacoteca do Estado na abertura de sua mostra Desobediências Poéticas, em cartaz até 30 de setembro.
Kilomba respondia a uma pergunta da plateia sobre as razões dos elementos biográficos em sua obra, portanto posicionar aí denota esse caráter de primeira pessoa: “É importante explicar porque se escrever em primeira pessoa; eu não falo sobre os outros, eu tenho que falar sobre eu mesma, sobre as minhas questões”, disse ao lado de Djamila Ribeiro, filósofa que hoje encarna o debate em torno do lugar de fala, um dos elementos presentes no debate da Pinacoteca.
Para Kilomba, assumir uma postura representa uma quebra importante na história da arte, já que “muitos artistas e muitas artistas mulheres também brancas baseiam seu trabalho na exploração absoluta da negritude, dos depoimentos, da língua, do discurso, das imagens, dos arquivos e da performance da negritude”. Escrevendo isso, lembro das pinturas em que Adriana Varejão se retrata como índia em uma de suas séries, e acho que de fato é preciso se questionar estratégias de representação como esta.
A própria Kilomba reconhece que “isso funcionou até pouco tempo atrás porque muitas artistas mulheres negras não tinham acesso a essas plataformas, mas em 2019 é absolutamente impossível dar credibilidade a esses trabalhos. É importante que não haja uma reencenação do colonialismo. Quando falamos em nome do outro estamos reproduzindo a essência do discurso colonial que é usar o outro como objeto pelo qual eu falo como sujeito”.
Com sua voz pausada e profunda, Kilomba usa as palavras de forma precisa, como nas narrações de duas de suas projeções em vídeo no segundo andar da Pinacoteca: Ilusões Vol. I Narciso e Eco e Ilusões Vol. II Édipo. Nelas, a artista reconta os mitos gregos de maneira performativa para em seguida desconstruí-los a partir de questões em torno da raça. Enquanto freudianos entendem a morte do pai como um conflito de família, Kilomba aponta como “esta fixação na família (branca) ignora as dimensões históricas e políticas deste conflito”, de acordo com sua própria narração.
Ela segue ainda de forma certeira: “no seio de uma relação colonial, por mais que as pessoas marginalizadas obedeçam à lei, nós raramente nos tornamos a autoridade legal, em vez disso, tornamo-nos os que são punidos e assassinados pela própria lei”, como a retratar de forma exemplar a discriminação cotidiana no Brasil.
Já em Ilusões II, a artista trata de quão “narcisista é esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos que é fixada em si própria e na reprodução da sua própria imagem, tornando todos os outros invisíveis”, usando aqui também sua própria narração. No catálogo da mostra, Djamila Ribeiro aponta como, no Brasil, Cida Bento já utilizava a mesma ideia com o termo “pacto narcísico de branquitude”. Segundo ela, esse conceito defendia que “as pessoas brancas consentem um pacto para se premiarem, se protegerem, não importando as circunstâncias e, com isso, manterem o estado de coisas injusto perante pessoas negros”.
Nada mais adequado, portanto, que ver trabalhos assim no segundo andar da Pinacoteca, onde está o acervo da instituição, para que eles funcionem como um agente disruptivo na narrativa oficial da história da arte que tanto deixou invisível as minorias, que no Brasil são as maiorias.
Os trabalhos de Grada Kilomba ocupam exatamente as salas nos cantos do acervo, como a permitir que, entre um deslocamento e outro, seja possível se refletir sobre os traumas do processo colonizador. Em Table of Goods, por exemplo, ela cria uma escultura com cacau, café e açúcar, justamente os produtos produzidos pelos escravos no Brasil. Encimada por velas, essa escultura torna-se uma espécie de memorial sobre o sacrifício de milhões de negras e negros.
Já em O dicionário, ela cria um ambiente onde cinco palavras são descritas em seus significados – negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação – estabelecendo uma espécie de percurso de como a opressão pode passar por distintas fases até ser eliminada.
O que não deixa de ser notável nesse pequeno conjunto de obras é a utilização do corpo de forma performática, particularmente nos vídeos, nos quais a própria Kilomba trabalha com um grupo de atores que atuam nos limites entre dança e teatro.
Essa estratégia é coerente com seu posicionamento em defesa da descolonização. Como ela afirma: “O momento chave da descolonização é nos posicionarmos na nossa subjetividade para sempre dizer de que lugar, de que tempo e de que espaço estou a escrever, quem sou eu e que biografia minha é esta que me leva a escrever isso e a essa produção do conhecimento. Eu estou refletida na minha obra e esse é o momento chave da descolonização do conhecimento e das artes.”
O debate na Pinacoteca está acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=ovSKrDLs9Ro.
Além de participar da abertura de sua exposição, Kilomba esteve em São Paulo para lançar o livro “Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano”, sua tese de doutorado defendida há 10 anos na Alemanha, um texto que questiona não só a violência social na descriminação, como o próprio formato acadêmico.