Toda foto é política. Não existem imagens ou olhares ingênuos. Existem a imagem histórica, o contexto e o olhar do período.
O debate que tomou conta das redes sociais a respeito da imagem (não a defino fotografia de propósito) de Gabriela Biló, publicada na capa do jornal Folha de S.Paulo já estava há muito tempo para explodir.
A imagem de Gabriela Biló não é a primeira e nem será a última a criar polêmicas. Com isso dito, é importante ressaltar que discordamos frontalmente do ataque que a fotógrafa vem sofrendo nas redes sociais. Este tipo de ofensa é inaceitável, assim como a violência demonstrada.
Devemos refletir, no entanto, sobre o que poderia ter criado tanto impacto na imagem divulgada: o papel do fotojornalismo e sua função na criação de leituras de histórias tem sido deixado de lado. Nenhuma imagem é unívoca ou tem apenas uma interpretação, mas a decodificação de seus códigos depende do momento sócio-histórico vivido.
Se é verdade que o fotojornalismo ou as fotografias jornalísticas foram desde sempre manipuladas (poderíamos ter uma lista de fotografias que falsificaram a história) e que a fotomontagem foi muito usada por artistas e publicadas em revistas, também é verdade que nem tudo que é publicado na mídia é fotojornalismo. Além disso, estas imagens – sem inocentá-las – estavam dentro de um tempo histórico e de uma circulação restrita e não escancaradas e circulantes pelas redes sociais.
O fotojornalismo por mais expressivo que possa ser tem suas normativas, uma delas é a da noticiabilidade, assim como regras éticas que constam da maioria dos manuais de redação – se é que alguém os lê. No fotojornalismo contemporâneo – que se inicia no final dos anos 1990 e é muitas vezes apoiado por editores de fotografia (quando existiam) – esta busca pela “expressividade criativa” foi muitas vezes estimulada como uma nova forma de linguagem; não era. A partir daí essa vertente “criativa” foi se potencializando com a única função de criar discussões e não debates.
Em que momento sócio-histórico se dá a publicação da referida imagem? O de uma eleição conturbada e da tentativa de golpe acontecida no dia 8 de janeiro, além do recrudescimento das fakes news do sentimento de sermos enganados e vilipendiados pelas notícias ou pela falta delas. Ou seja, não há momento mais inadequado. Já em 2017 “fake news” foi eleita a palavra do ano pelos dicionários internacionais e desde lá se tornou vocábulo comum em todas as conversas.
Em contrapartida, nos últimos anos (que coincidem com a pandemia) o fotojornalismo ressurgiu em seu papel fundamental em tentar restabelecer a ordem dos acontecimentos. Por outro lado, encontramos toda uma “geração TikTok” que usa a imagem sem conhecê-la e que de forma paradoxal não consegue interpretá-la, logo a vive de forma literal. É aí que a imagem se torna perigosa.
A estranheza da imagem de Biló está também na legenda que procura explicar – não se sabe para quem – múltipla exposição. Conceitos vazios para a maioria das pessoas. Não se trata aqui de usar técnicas, mas se trata aqui de encaminhar o pensamento para algo que de fato não existiu. Manipular uma fotografia não é usar editores de imagem, é alterar seu sentido. A escolha criativa se dá na gramática que você utiliza para apresentar um fato e não na sua distorção. Todo jornalista – e, sim, o fotojornalista é antes de mais nada um jornalista e não um artista – é sim responsável por aquilo que torna público e não pode se isentar afirmando que cada um interpreta como quer. Não. Existe uma credibilidade intrínseca em quem procura determinada mídia para se informar.
Quando o jornalista se torna personagem da própria notícia que está buscando, se inserindo por meio de vídeos, selfies e gracejos, transformando tudo em memes – que não é humor, mas alienação – estamos caminhando por um terreno um tanto perigoso. Espanta a estética das redes sociais que se impõe de forma leviana sobre todas as áreas do conhecimento sem a devida reflexão.
Falar que jornalismo se tornou entretenimento já está ultrapassado numa sociedade que trata tudo como espetáculo. Esta discussão foi muito falada pela tão citada Susan Sontag, que cria uma divisão entre estético e político, e pela escola francesa pós-estruturalista, que desdenha a fotografia documental, jornalística, a ideia de autoria. Aliás a ideia de autoria ou do reconhecimento do autor pressupõe uma responsabilização.
Como afirma a pesquisadora Ariella Azoulay: “A criação ou a imaginação não são o oposto do político”. Existe sim, uma intencionalidade política na imagem divulgada pela Folha de S.Paulo junto a um texto que leva a uma leitura da imagem.
Foi triste o momento da publicação desta imagem, mas quem sabe desta polêmica não possa nascer um bom debate e reflexão de como estamos construindo nossa história a partir do jornalismo e que retornemos a respeitar a verdade factual dos acontecimentos.