Em quase todos os fotógrafos existe uma alma flâneur, o prazer de vagar pelas cidades, olhar com olhos atentos e fazer descobertas. O flâneur guardava estas imagens em sua memória, o fotógrafo nos devolve suas impressões em uma fotografia. Narrar a vida cotidiana, apontar o que merece ser visto, parar para observar mínimos detalhes, situações para as quais ninguém daria a mínima bola. É desta forma que German Lorca (1922-2021) desfila suas fotografias sob nossos olhos. Um olhar atento, crítico e, muitas vezes, irônico.
Nascido em 1922 – teoricamente o ano em que explode o modernismo no Brasil -, este paulistano da gema do Brás, filho de imigrantes espanhóis, de andar inquieto e sorriso fácil, conheceu o mundo pelas fotografias que via na imprensa, nos jornais, nas revistas. Em 1940 formou-se em contabilidade, uma profissão que parecia apertada para ele. Queria vagar, fotografar, andar por aquela cidade dos anos 1940 que se modernizava, que crescia. Queria seus reflexos, suas luzes, suas narrativas. E foi num desses seus passeios que realizou uma primeira fotografia de impacto, em 1947: um flagrante de um protesto contra o aumento dos bondes em São Paulo. Se encantou com seu registro. Dois anos depois passou a fazer parte do Foto Cine Clube Bandeirante, que ficou conhecido por trazer a modernidade para a fotografia brasileira. Foi no Foto Cine Clube Bandeirante que nomes como Thomaz Farkas, Marcel Giró, Geraldo de Barros e Gaspar Gasparian iniciaram o experimentalismo, a quebrar fronteiras e trazer uma imagem que brincava o tempo todo com as vanguardas europeias, com o surrealismo, com as técnicas fotográficas, além de ser um centro de discussão e difusão da fotografia. Foi neste ambiente que German Lorca decidiu se dedicar totalmente à fotografia.
Nas suas primeiras imagens, a cidade de São Paulo continuava sendo a principal busca. Tão pouco fotografada em sua imensidade, muito julgada em sua aparência. Quem a define feia não a conhece. Quem a define enigmática se sente por ela atraído e procura de alguma forma compreendê-la. Pode ser via música, verso, literatura, mas sem dúvida nenhuma a imagem lhe rende a melhor homenagem. Muito já foi mostrada, poucas vezes foi compreendida. Muitas vezes definida como cidade de pedra, cidade cinza, da chuva e da garoa. Cidade amada, cidade odiada. Mas foi em seus recantos e esquinas que Lorca a descobre e redescobre. Uma cidade que ele sempre fotografou.
No início dos anos 1950, abre seu estúdio fotográfico, afastando-se do Foto Cine Clube Bandeirante para profissionalizar-se como fotógrafo publicitário. Dois anos depois foi o fotógrafo oficial do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
Na publicidade, levou seu olhar aguçado, educado e sempre irreverente. Perceber a força dos objetos banais e tornar esta aparente banalidade em uma imagem que merecia ser vista. E, assim como fazia quando andava pelas ruas, utilizava a imagem publicitária para questionar suas características realistas. Brincava com a imagem. Criava uma dúvida, em uma época em que ninguém falava em pós-produção, mas mesmo assim ele desconcertava o olhar do espectador. Brincadeiras estéticas, jogos de olhares, alusões e citações. Criava e se divertia. Tudo isso aliado a novas possibilidades técnicas e a liberdade com a qual costumava trabalhar. E foi assim também com seus autorretratos e fotografias artísticas.
Mas a cidade continuava a encantá-lo e, incansável, ele continuava a fotografá-la. No final dos anos 1990 deixa seu estúdio sob a responsabilidade dos filhos e retorna ao seu caminhar. Em 2002 realiza um ensaio no Ibirapuera, que ele havia fotografado em 1954 e em 2009 retorna para o centro da cidade.
Incansável, se encanta com a pós-produção, com o poder de transformar suas imagens no computador, recriá-las e revisitar seu arquivo. Descobre o poder da cor para o seu trabalho artístico. Fazer, refazer, rever, sempre foram seus lemas. E foi por isso que em 2016, aos 94 anos, resolveu ir até Nova York, depois do MoMA ter comprado parte de suas imagens juntamente com a de outros fotógrafos modernistas brasileiros, num momento de renascimento dessa estética. Lá resolveu retomar um ensaio realizado nos anos 1960 e 1980, mais especificamente no Central Park, já pensando na pós-produção contemporânea. Sua última exposição aconteceu em 2018 no Itaú Cultural, em São Paulo, com curadoria do Rubens Fernandes Junior e de José Henrique Lorca, seu filho.
German Lorca morreu aos 99 anos, em 8 de maio, dia em que o MoMA de Nova York abriu a mostra Fotoclubismo: Brazilian Modernist Photography and the Foto-Cine Clube Brandeirante, 1946-1964, da qual ele é um dos autores. E nos deixou mais de 70 anos de experiências fotográficas, de possibilidades criativas, de olhares que se renovam.