Uma arte viva de matriz inspirada no agora, com narrativas incompreensíveis para uma parcela da sociedade mais conservadora, rompia o cenário artístico de Porto Alegre em 1992, com a inauguração do MACRS – Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Hoje, quase 30 anos depois, com clima diferente, o museu lança seu primeiro catálogo geral com 1.813 de obras do acervo, de 921 artistas. Dentro desse contexto a publicação pode ser definida como um trabalho in progress porque, com certeza, vai se renovar de tempos em tempos. O projeto foi organizado num período de dois anos e a execução final levou seis meses, trabalhada sob a pressão do tempo. A coordenação é de Vera Pellin, gestora cultural, com orientação de Maria Amélia Bulhões, pesquisadora e curadora do projeto. Essa confluência de esforços realizados praticamente ao mesmo tempo resultou em um livro de mais de 300 páginas, com obras que exemplificam a dissolução das fronteiras e a fase libertária da arte contemporânea, especialmente a partir dos anos de 1970/80. Também oferece ferramentas para discutir contextos e o olhar do museu sobre a contemporaneidade.
Para marcar o evento, uma grande exposição, pensada a partir de um recorte da coleção, exibe 70 obras que introduzem o visitante às expressões reveladoras da contemporaneidade em fotografias, instalações, performances, pinturas, gravuras, vídeos e objetos, com curadoria de Maria Amélia, crítica e presidente da ABCA – Associação Brasileira dos Críticos de Arte. Os dois eventos exploram a simultaneidade de proposições e o desejo de identificar uma coleção que abrange desde os anos de 1970 até os dias de hoje. Editada em português, espanhol e inglês, a publicação pode ser pesquisada no site do projeto www.acervomacrs.com . Para André Venzon, diretor do museu, o catálogo é resultado de um projeto que coloca em evidência a totalidade das obras do acervo, tornando-o acessível de modo permanente.
A arte move o ser humano em forma comunicante, não há arte isolada, trancada em si mesmo, como diz Hélio Pelegrino, o poeta da psicanálise. A persistência dessas relações faz da arte um ato plural. Um elenco expressivo de artistas brasileiros foi reunido ao longo de três décadas no MACRS. Entre eles estão Cildo Meirelles, Regina Silveira, Nelson Leirner, Carlos Vergara, Carlos Fajardo, Rosângela Rennó, Paulo Nazaré, Rochelle Costi, Lucia Koch, Jorge Menna Barreto e Nuno Ramos. Algumas obras foram adquiridas pelo museu, outras doadas por artistas e ou particulares e ainda pela Bienal do Mercosul. Uma das características marcantes do conjunto é que 47% dos autores são mulheres, o que evoca um debate interessante que atinge as fronteiras machistas. Esse é um dado raro que se move na contramão do que ocorre em grande parte dos museus pelo mundo. Muito antes de um tipo de “politicamente correto” ocupar o cenário da arte e tentar, obsessivamente, encaixar a arte como função social, “o museu já trazia obras que investigam universos não hegemônicos, como o feminino, o negro, o indígena ou o marginal, procurando instaurar no sistema da arte a crítica e os debates de gênero, etnias e relações sociais conflitantes”, como exemplifica Maria Amélia. A curadora salienta também que o corpo é forte presença, colocando em pauta aspectos reprimidos da sexualidade. “A relação com todas essas problemáticas tem espaço no conjunto da coleção”.
Assim como ocorreu com o MAC-USP (São Paulo), criado em 1963, mas que só conseguiu sede principal e definitiva no antigo Detran em 2012, o MACRS também não tem local próprio. Funciona no 6º andar da Casa de Cultura Mario Quintana, sem condições de expor grande parte de seu conjunto. No entanto, Maria Amélia garante que já existe local destinado à sede definitiva no 4º Distrito, antigo bairro fabril de Porto Alegre. “Já tivemos outras tentativas e muitas promessas não cumpridas, agora já saiu a portaria, não tem volta”. O fato de o museu não ter sede, segundo a curadora, deve-se ao fato de que em décadas passadas, parte da sociedade e políticos eram resistentes à arte contemporânea por não compreendê-la, daí a dificuldade de conseguir doações e patrocínios. A cidade é o lugar do saber, da liberdade e da experimentação, portanto não há como deter a efervescência artística na cidade promovida pelos jovens artistas que transitavam nos espaços de arte como o Torreão, comandado por Elida Tessler e Jailton Moreira e que durou de 1993 a 2009. Mas, sem dúvida, a alavanca da arte contemporânea em Porto Alegre foi o surgimento da Bienal do Mercosul em 1997, que ressignificou o espaço e o papel cultural da cidade no contexto internacional. Ao longo das edições expôs centenas de artistas nacionais e estrangeiros que exploram todo tipo de cruzamento interdisciplinar de criação, demonstrando as constantes mutações da arte contemporânea.
Estamos num momento de recuo reflexivo devido à pandemia, com um sistema político caminhando para o abismo e toda sorte de reflexão aflorando sobre a verdadeira função da arte na sociedade. A máxima de que toda a cidade que tem uma Bienal desenvolve um circuito de arte atuante não vale tanto para Porto Alegre. Segundo Maria Amélia, ainda são poucas as galerias dedicadas à arte contemporânea. “Houve sim um crescimento substancial de instituições culturais como a Fundação Bienal do Mercosul, o Farol Santander, a Fundação Iberê Camargo, o Instituto Ling.” Ela cita também a importância do curso de pós-graduação em arte da UFRGS- Universidade do Rio Grande do Sul, onde leciona, e a profissionalização de um corpo técnico de montadores, produtores, curadores, além de uma massa crítica atuante. “Mesmo que o circuito das galerias não seja tão forte como poderia ser, dado o número de artistas estudantes que saem dos cursos de especialização na UFRGS, a cidade está mais bem equipada, mas ainda há muito o que conquistar”, conclui Maria Amélia.
Serviço: MACRS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul) 6º andar da Casa de Cultura Mario Quintana – Rua dos Andradas, 736 – Centro Histórico, Porto Alegre.