Ioiô, nhô ou nhonhô, segundo o dicionário Houaiss, eram termos utilizadas pelos escravizados e seus descendentes para tratar, com reverência, os homens brancos, especialmente patrões e proprietários. Diminutivo de sinhô, nhonhô se referia mais comumente aos homens mais jovens da casa grande. Mas, apesar de se relacionar a tempos distantes, de escravidão e colonialismo, não se pode dizer que a história e simbologia destas palavras estejam guardadas apenas na memória de um passado longínquo do Brasil. Um dos exemplos disso é a existência, no centro da maior cidade do país, de um palacete chamado, ainda hoje, Casarão de Nhonhô Magalhães, uma mansão que agora inspira o novo trabalho dos artistas Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi, Nhonhô – “esse nome neutralizado no vocabulário comum, cotidiano, como é o colonialismo no Brasil”, afirma Beiguelman.
“A palavra [nhonhô] e as dinâmicas de poder que a atravessam perduram no tempo e nas relações sociais ecoando na história de uma elite europeizada e enriquecida pelo café, que urbanizou São Paulo”, diz o início do texto que percorre o vídeo de cerca de 9 minutos – uma “biografia possível de um palacete”, nas palavras de Solange Farkas, diretora do Videobrasil Online, plataforma onde o trabalho fica exposto até 18 de abril. A história do casarão se mistura à história de Nhonhô Magalhães – o barão do café, banqueiro e empresário Carlos Leôncio de Magalhães (1875-1931) -, mas também nos diz muito sobre a história de São Paulo, de suas elites, e da própria formação do Brasil moderno.
Realizado a partir das técnicas da fotogrametria – um processo de construção de um espaço virtual através de fotografias, como explica Sartuzi – e da modelagem em 3D, somadas à colorização por inteligência artificial e à sonorização composta por algoritmos, o vídeo apresenta, com sua “estética tecnológica”, uma atmosfera permanentemente tensa, elétrica e um tanto fantasmática. Sem corpos ou vozes humanas (a própria narração é feita apenas através de legendas), o clima criado se relaciona diretamente à própria história – um tanto hermética e obscura – do casarão.
Situada no bairro de Higienópolis – a “cidade da higiene” onde a elite paulista se refugiava e buscava recriar o modo de vida das metrópoles europeias -, a mansão foi construída entre os anos 1920 e 1930 por Nhonhô Magalhães para ser sua residência familiar. Com 2.000 m2 e cerca de 40 cômodos, construída no chamado estilo arquitetônico eclético e inspirada em construções francesas, a casa ficou pronta já após a morte do cafeicultor e foi o lar de sua esposa e de cinco de seus filhos. Ao longo das décadas seguintes, o edifício – que para alguns ganhou fama de palacete amaldiçoado – se tornou repartição pública, foi tombado como patrimônio histórico e, em 2005, arrematado pelo Shopping Higienópolis em um leilão, com a condição de que fosse mantida uma área para uso cultural. Em 2020, essa área – com entrada apenas pelos fundos da casa – passou a ser ocupada pelo Paço das Artes.
Segundo os artistas, essa história, aqui brevemente resumida, levanta uma série de discussões sobre a mentalidade das elites patriarcais – coloniais ou burguesas -, as transformações urbanas e sociais da cidade, a promíscua relação entre interesses públicos e privados no país e uma visão da cultura como acessório. Assim, a ideia do vídeo “é tomar a arquitetura como dispositivo, não apenas como um prédio em si. A partir de um instrumento e de uma arquitetura particular, transformar aquilo num enunciado discursivo”, explica Beiguelman.
Presença da ausência
Mas como fazê-lo quando os artistas se deparam com uma série de lacunas de informações, não só documentais, e com a própria impossibilidade de acessar todo o espaço arquitetônico da casa – seja pelo contexto da pandemia, seja pela falta de autorização dos atuais proprietários do edifício? A solução foi explicitar estas ausências, como conta Beiguelman: “Acho que o vídeo inteiro é uma presença da ausência, em todos os sentidos. Os vazios vistos nas imagens em 3D são também uma presença das interdições. Nós não tivemos acesso à casa”. E ela completa: “Tem ainda a presença da ausência de muitas informações. Foi usado um vasto arquivo de documentos, mas a narrativa inclui lapsos, fantasias e ficções”.
Neste sentido, segundo Sartuzi, o uso da fotogrametria ganha ainda mais sentido: “Pois nessa técnica, quando existem pontos em que falta informação, seja pela luminosidade insuficiente ou por outras ausências, o computador não computa aquele ponto, resultando em uma paisagem fragmentada. E isso entra no nosso vídeo junto a esse fosso de falta de informação, a tudo isso que a gente não teve acesso”.
O uso das tecnologias – com Gabriel Francisco Lemos e Bernardo Fontes na equipe – decorrente das pesquisas artísticas tanto de Beiguelman quanto de Sartuzi, não se dá, portanto, de modo gratuito, mas surge para dar conta desta história complexa que decidiram contar. “A tecnologia faz parte de um método de trabalho nosso que não tem uma relação nem tecnofóbica nem tecnofílica, não tem nada da técnica pela técnica, não é uma moda. Esse uso respondeu, inclusive, às possibilidades de fazermos um vídeo nesse contexto: duas pessoas que nunca trabalharam juntas, em meio à uma pandemia, e que se encontraram fisicamente somente uma vez no casarão”.
A colorização feita a partir da inteligência artificial (IA), por sua vez, resultou em uma paradoxal “tonalidade europeia” para uma história passada no Brasil, o que foi intencionalmente mantido pela dupla. Após pesquisar dezenas de programas de colorização por IA, criados para a reconstituição de imagens do passado, Beiguelman percebeu que o resultado era sempre de cores e luzes encontradas nos países do Norte – “já que todo o treinamento dessas ferramentas é feito com grandes arquivos digitalizados europeus”. “Então o resultado é que migrou para dentro do vídeo uma luz que não é produzida aqui, o que deu essa camada que decidimos manter porque, paradoxalmente, ela reproduz o olhar que essas elites tinham sobre si”. E ela conclui: “A IA entrou como mais uma voz de leitura desse emaranhado de colonialismo, elitismos e estrangeirismos que continuam entre nós”.