O mais novo museu da cidade de São Paulo condensa de forma instigante passado e presente. Instalado num prédio eclético, que começou a ser construído ainda no século 19 e que foi inteiramente restaurado a partir de uma concepção bastante atual de museologia e inclusão, o Museu do Ipiranga tem dois pilares estruturantes – o estímulo à pesquisa e a formação de um público amplo – e um objeto central: a cultura material. Apresenta-se como um “laboratório de história”, em contraposição direta a uma visão arcaica e fetichizada da história, na qual corações inchados de formol de ex-monarcas e símbolos e datas nacionais são sequestrados com o objetivo de perpetuar as estruturas de poder construídas pelas gerações passadas.
Transformar o local erigido para ser um memorial de sustentação de um discurso de protagonismo de São Paulo na construção da nação e da heroica figura do bandeirante, em um espaço de investigação no qual os objetos, documentos e outros vestígios materiais tornam-se protagonistas, não é uma tarefa fácil. Sobretudo se levarmos em consideração a existência de uma série de restrições decorrentes dos tombamentos do edifício como patrimônio arquitetônico e imaterial pelas três instâncias de preservação.
Uma das soluções encontradas foi o uso massivo de recursos audiovisuais no novo projeto museológico. Logo na abertura, oficializada em 6 de setembro na esteira das celebrações do bicentenário, frustradas pelo uso político da data, 56 produções audiovisuais complementavam as vitrines, mostruários e obras de arte espalhados pelo prédio. A previsão é de que nos próximos meses outras venham a se somar, totalizando 70 peças digitais, dialogando com a estrutura estável e problematizando assim o discurso oficial que impregna o projeto ideológico do museu.
O desenho curatorial também aplicou fortemente recursos táteis, permitindo que o visitante – e não apenas aquele que tem alguma limitação visual – toque em diversas obras e objetos que compõem as várias exposições, diminuindo assim a distância entre sua existência real e simbólica. São mais de 300 recursos do gênero, que o público timidamente vem descobrindo, indo de um jacaré taxidermizado (representando o período em que o museu também abrigava coleções de arqueologia e etnologia, transferidas para outras instituições da USP na década de 80) a réplicas em relevo de peças do acervo, como o retrato de Maria Quitéria ou uma sala de descanso na qual é possível experimentar de forma concreta os vários modos de sentar na história do mobiliário brasileiro.
A reforma física, que vem atraindo o interesse de um público ávido por novidades, mais do que dobrou o espaço dedicado às exposições e circulação dos visitantes. Ela também atualizou e recontextualizou o espaço, tornando possível essa expansão e a inclusão de novos olhares e interpretações sobre o acervo, a arquitetura do prédio e o entorno, observado agora a partir do mezanino instalado no topo do edifício.
Saíram excessos como as dourações nas colunas e volutas, a cor foi harmonizada e padronizada num suave tom de amarelo originário (as paredes do prédio foram submetidas a uma verdadeira pesquisa arqueológica a fim de encontrar a tonalidade de origem). As salas foram integradas, os andares superiores foram incorporados ao museu e as atividades (como acervo, restauro, pesquisa etc.) ali exercidas foram transferidas para outras casas alugadas nas redondezas do bairro do Ipiranga.
Obras fundamentais da coleção, como a célebre tela Independência ou Morte, de Pedro Américo, que recriou e mitificou a encenação do grito do Ipiranga muitas décadas depois do gesto simbólico da Independência (a tela é de 1888), ou a pintura Partida das Monções, de Almeida Júnior, foram restauradas e ganharam nova vitalidade e novo significado.
Reafirmando seu papel como museu universitário, no qual a pesquisa tem importância fundamental, a equipe curatorial da instituição se apoiou nesse processo de renovação para trazer a público algumas de suas linhas de investigação, organizando a experiência de visita em 11 diferentes mostras de longa duração, articuladas em dois eixos bastante didáticos, intitulados Para Entender o Museu e Para Entender a Sociedade, que ficarão em exibição por um período de cinco anos. Além disso, está prevista para novembro a inauguração de uma exposição temporária. Memórias da Independência reunirá um conjunto expressivo de elementos sobre os vários movimentos de libertação, ampliando a questão para além de São Paulo e do mito do Ipiranga.
É uma imersão intensa num conjunto extremamente amplo e diverso e que corresponde a apenas uma pequena ponta desse grande universo museológico, já que apenas 3,8 mil dos mais de 450 mil itens conservados pelo museu fazem parte da exposição.
Em todo o conjunto, há uma clara tentativa de encontrar no ordinário, no cotidiano, os nexos que nos permitem compreender melhor diferentes aspectos de nossa cultura, resgatada por meio de objetos e histórias cativantes, como a coleção de brinquedos de diferentes idades, materiais e formas – usada no núcleo dedicado a falar sobre o trabalho de conservação exercido pelo museu (ao lado de outras funções primordiais como a comunicação, a catalogação e a coleta) –, um magnífico conjunto de enxadas utilizadas pela imigração japonesa ou ainda a tocante vitrine intitulada “as coisas de meu pai”. Ali estão reunidos os pertences, memórias e afetos guardados cuidadosamente por Enedino Vieira Telles, até sua morte, aos 88 anos de idade, formando um pequeno museu afetivo, ativado para testemunhar sobre a relação entre os homens e os objetos de seu cotidiano.