O governo Bolsonaro armou uma bomba de efeito retardado que já começou a ser detonada, impactando de forma perniciosa os maiores museus brasileiros e prometendo asfixiá-los de forma irreversível até o final de 2022. Nos últimos meses do ano passado e no início deste, a Secretaria Especial de Cultura do governo arquivou os planos anuais de 2022 de diversas instituições museológicas do país e deixou às suas gestões apenas a opção de estender os planos anuais de 2021 com uma complementação de incentivo (um mecanismo que chamam de “expandido”).
É o caso, por exemplo, da Pinacoteca de São Paulo, museu eleito como o melhor do Brasil e da América Latina em 2016 pela Traveler’s Choice Museum, que teve arquivado seu Plano Anual 2022 apresentado pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura, organização que administra o local. Anualmente, a Pinacoteca capta recursos incentivados da ordem de 18 milhões de reais, e terá que funcionar em 2022 com apenas 6 milhões (aprovados em novembro). Por conta disso, a instituição, que atingiu o seu teto agora em fevereiro, já deixou de receber recursos de patrocinadores interessados, uma situação que nunca se presenciou nos 30 anos de funcionamento da Lei Rouanet (Lei de Incentivo à Cultura).
O Museu de Arte de São Paulo, o Masp, o mais importante da América do Sul e um dos museus vitais do Hemisfério Sul, vive um drama parecido. O setor de Fomento da Secretaria Especial de Cultura aprovou uma complementação de apenas 8 milhões de reais para o Masp em 2022, sendo que o museu utiliza 42 milhões de reais de incentivo fiscal anualmente. Também o Museu do Futebol e o Museu da Língua Portuguesa tiveram seus projetos transformados em planos bianuais, o que os obriga a enfrentar o ano de 2022 não com o valor estimado pelas suas direções, mas com uma “complementação” de arbítrio exclusivo do governo.
No Rio de Janeiro, por exemplo, o Museu do Amanhã recebeu autorização para captar uma complementação do valor do seu Plano Anual 2022 de 20 milhões de reais, quando o valor total anual de seu projeto de funcionamento prevê a captação de 63 milhões de reais no decorrer do ano. Suspeita-se que hajam muitas outras instituições enfrentando problema idêntico, o que coloca em risco a própria continuidade do seu trabalho num futuro próximo, mas os museus evitam comentar o problema, temendo retaliações (o que é razoável, em se tratando do atual governo).
Também parece evidente que a ação da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura do governo Bolsonaro, encabeçada por um servidor de postura agressiva e desrespeitosa, André Porciuncula, reveste-se de um fundo de natureza política. Ao mesmo tempo em que fustiga, pela via econômica, instituições consagradas, tradicionais e de notória e elogiada atividade museológica no setor de artes e pesquisa, o governo se mostra bastante generoso em outras frentes. Por exemplo: aprovou integralmente o pedido de incentivo fiscal o projeto arquitetônico do Museu do Zebu, em Uberaba (MG), de 3,2 milhões de reais, assim como para suas atividades pontuais. Trata-se de uma instituição de ruralistas que documenta o desenvolvimento da criação daquele tipo de gado.
Em São Paulo, o confronto entre o staff da cultura federal e o estadual é explícito e desagradável. Os gestores federais vivem às turras nas redes sociais com o Secretário de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, Sérgio Sá Leitão, a quem é ligada, subordinada ou presta contas a maioria dos museus paulistas. Como se lidassem com um brinquedo privado seu, os secretários Mario Frias e André Porciúncula fazem piadas deselegantes (quando não homofóbicas ou misóginas) contra seu adversários nas redes sociais. Contra Leitão, esse confronto intensificou-se após uma série de modificações na Lei Rouanet (a legislação federal de incentivo à cultura) que o governo Bolsonaro anunciou no último dia 8 de fevereiro. As mudanças, que têm uma abrangência colossal e fundamentalmente negativas, foram editadas por meio de uma Instrução Normativa (IN) e um dos críticos mais exacerbados foi justamente o secretário paulista.
“A nova IN da Lei Rouanet é ilegal”, disse Sá Leitão. “Sua edição leva o terraplanismo a uma nova dimensão. Trata-se de um ataque sórdido do bolsonarismo a um dos principais patrimônios do Brasil, a cultura brasileira. Se ainda há um Estado de Direito no Brasil, a Justiça não deixará que isso prospere”. Frias e Porciuncula limitaram-se a ironizar o secretário e a postar acusações que pesam contra Sá Leitão em tribunais federais.
Mas o fato é que as consequências da Instrução Normativa que mudou a Lei Rouanet são daninhas e de alcance imponderável. Além de fixar um teto esdrúxulo para o pagamento de cachês de artistas (R$ 3 mil reais), a medida impactou decisivamente nos museus, já que traz novas disposições para os Planos Anuais (que possibilitam que a museologia faça o planejamento de suas atividades, que requerem negociações adiantadas com outros museus).
A primeira mudança que cria preocupação é que todas as autorizações para captação serão concentradas no próprio Secretário Especial de Cultura, o que dá um papel subalterno a todos os estudos técnicos prévios. As propostas devem ser apresentadas até o dia 30 de setembro do ano anterior ao Plano Anual, e sua execução deverá ser realizada no prazo de 12 meses coincidente com o ano fiscal. Não será permitida a coexistência do Plano Anual de atividades com outros projetos ou planos anuais do mesmo proponente e se exigirá do museu uma série de ações culturais em determinados produtos (de forma proporcional aos recursos captados). Outra exigência: só serão transferidos os recursos após a prestação de contas do projeto anterior.
Uma das maiores instituições financeiras do País, que utiliza a Lei Rouanet para suas ações, ouvida pela nossa reportagem, informou que ainda não tem um estudo da dimensão das mudanças porque “muitos dos projetos já estão aprovados e em execução e não foram atingidos pela atual Instrução Normativa”. Mas analisa com lupa as implicações do texto.
Diversos produtores estão contando com duas coisas em relação à ação do governo: 1) Há um pedido de inconstitucionalidade em relação à maioria das medidas (que já tinham sido adiantadas em um decreto) em trâmite no Supremo Tribunal Federal; 2) o calendário eleitoral certamente forçará não apenas uma mudança no pacote, como também poderá torná-lo inócuo (o próprio Mario Frias deve se desligar da secretaria de Cultura para tentar uma vaga de deputado federal).