Lagoa dos patos
Nilda Neves, “Lagoa dos patos”, 2010. Foto: Ana Pigosso

No início dos anos 1960, o fazendeiro Osvaldo Neves alimentava o sonho de que sua filha, Nilda, que trabalhava na roça e pegava na enxada a seu lado, viesse a se tornar uma professora, um feito, à época comparável, a ter um filho astronauta, conta a própria Nilda. De sua fazenda em Patos, Botuporã, na Bahia, Osvaldo viajava para vender gado em cidades maiores do estado e nelas comprava livros para a filha.

Eram títulos de Monteiro Lobato, Machado de Assis, Guimarães Rosa, entre outros, cujas narrativas passaram a povoar a mente já naturalmente fantasiosa e fértil da menina. A essas ficções, Nilda foi somando outras, vindas da tradição oral do interior baiano, e ainda fatos históricos e as memórias das paisagens em que viveu, cenários e figuras, reais ou não, que somente há pouco mais de duas décadas vieram a germinar e florescer na forma de pinturas.

Quase 20 delas, feitas de 2010 até hoje, estão em cartaz até 6/5 na exposição Visagens e assombros do sertão, em cartaz na Central Galeria, em São Paulo, onde Nilda Neves já havia participado de duas coletivas, em 2020 (Tudo o que você me der é seu, com curadoria de Renan Quevedo) e 2022 (Alegria, um invenção, com curadoria de Patricia Wagner). Foi nessa última que Rivane Neuenschwander, que divide com Lisette Lagnado a curadoria da individual, teve seu primeiro contato com a obra da artista baiana.

Diante das criações de Nilda, Rivane afirma que não pensa “honestamente, especificamente em arte contemporânea brasileira”. Antes, vê ali refletida “uma miríade de outros artistas, da literatura, passando pela música, como Cicero Dias, Itamar Vieira Junior, Elomar, Raduan Nassar, Horace Pippin, e claro, o Lorenzato”, diz.

Feita a quatro mãos, com Lisette, a curadoria envolveu também um intenso diálogo com a própria Nilda, a quem ambas visitaram em Camanducaia, no interior de Minas Gerais, para onde a artista se mudou em 2020 e lá comprou uma casa de oito cômodos, um ateliê-morada, em que o quintal é seu principal espaço de trabalho. Ali, Nilda pinta sobre seu próprio colo ou sobre uma mesa, quando faz telas de grandes dimensões, como Vencendo a Guerra de Canudos a badoque (2023), agora em exposição. No lugar, tomou mais apreço pela madeira como suporte – antes, chegara a pintar até mesmo sobre portas -, seja de demolições ou de troncos recolhidos à beira de rios, e que adicionou com mais constância à sua produção, a exemplo do quadro Arrancando um dente, de 2021.

 

Ainda em seu texto curatorial, Lisette Lagnado indaga o impacto da leitura na produção artística de Nilda Neves, questionando: Qual a participação da tradição oral na constituição de cada tela? Como a poesia e a literatura contribuem nessas composições? Lisette também destaca o caráter memorialista de sua obra:

Nilda Neves pinta de memória histórias vividas, outras que apenas ouviu. Da emoção da escuta jorram imagens que são transpostas diretamente sobre a tela, sem um desenho prévio. Estabelece uma diferença entre “visagens” e “aparições” quando procura explicar as fontes que animam suas formas. Linhas retorcidas, tensionando a fronteira de um eventual surrealismo tropical, mesclam fatos ilustres com profecias populares e ficções científicas.

TRAJETÓRIA

Nilda Neves nasceu em 1961, primogênita dos cinco filhos de Osvaldo e Ana Rita. Como já dito, trabalhava na roça, na Botopurã natal, até mudar-se, já casada, para Brumado, também na Bahia. Formada em contabilidade em 1982, em Brumado mesmo, foi em 1999 para São Paulo. Na capital paulista, abriu em 2000 uma lanchonete que servia comidas nordestinas em Taipas, subdistrito de Pirituba. No ano seguinte, em seu estabelecimento, recebeu de um mal pagante um áudio-livro de auto-ajuda, em formato de CD, em troca de algumas cervejas. Ouviu o tal CD e, de um sonho tido logo depois, veio o impulso de escrever um livro.

Primeiramente, Nilda ensaiou escrever poemas, entremeados por desenhos, mas não chegou a lançá-los. Já em 2010, ela partiu para a ficção, escreveu e publicou o livro de contos Belo sertão. No ano seguinte, veio o romance O lavrador do sertão, sobre o qual Lisette Lagnado discorre em seu texto curatorial: “Sua prosa é um convite à viagem pela geografia humana de um Brasil deslumbrante, alimentado por conflitos sociais, religiosos, amorosos, poemas épicos de um tempo heróico.”

Quando Belo sertão e O lavrador do sertão haviam ficado prontos, Nilda recusou-se a ter que pagar a alguém para criar as capas. Surgia, então, suas primeiras experiências artísticas: Nilda fez desenhos, sobre papel de caderno, com tintas acrílicas. Ambos foram posteriormente vendidos por até R$ 5 mil – sendo que cada livro havia custado R$ 30.

Capa do livro "O lavrador do sertão", de Nilda Neves
Capa do livro “O lavrador do sertão”, de Nilda Neves

A partir daí, Nilda foi aprendendo a pintar como autodidata. Ia às lojas, escolhia e comprava seus pincéis e suas tintas. Produzia, sem, no entanto, abandonar a lanchonete. Em 2005, desistiu do estabelecimento e foi trabalhar como cabeleireira e manicure no salão Dallas, da Rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros. Ao mesmo tempo, já pintava suas primeiras telas. Lembra que um corte de cabelo custava R$ 15, mas vendia seus trabalhos por R$ 1.500, por exemplo.

Dez anos depois, Nilda decidiu ter seu próprio salão, num espaço alugado próximo à Rua Cunha Gago, em Pinheiros. Tendo prostíbulos como vizinhos, seu negócio não progrediu. Passou a vender acarajés na porta do salão. Continuava a pintar e, em 2015, o galerista Renato De Cara a convidou para apresentar seus trabalhos na Mezanino, numa de suas primeiras coletivas.

Nos anos seguintes, seguiram várias individuais – como Sertão em devaneios, Centro Cultural Santo Amaro (São Paulo, 2019) e Narrativas do sertão, Face Gabinete de Arte (São Paulo, 2018) – e coletivas, entre elas O Sagrado na Arte Moderna Brasileira, Museu de Arte Sacra (São Paulo, 2019), Modernismo desde aqui, Paço das Artes (São Paulo, 2022).

Hoje, seus trabalhos estão presentes nas coleções do MAR (Rio de Janeiro), MAC-USP (São Paulo) e MACS (Sorocaba). Em 2020, Nilda recebeu Menção Especial na 15ª Bienal Naïfs do Brasil — Sesc Piracicaba. Uma trajetória que culmina agora com a nova individual, sobre a qual Rivane acrescenta:

“Tenho admiração pelo vocabulário e pela liberdade da Nilda em sua produção. A mim também me interessa o caráter de resistência, do sertão, que emana das pinturas”, conclui a artista e curadora.

SERVIÇO
Visagens e assombros do sertão, de Nilda Neves
Curadoria: Lisette Lagnado e Rivane Neuenschwander
Até 6 de maio
Central Galeria – Rua Bento Freitas, 306, subsolo, Vila Buarque – São Paulo (SP)
Visitação: de segunda a sexta-feira, das 11h às 19h; sábados, das 11h às 17h

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