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A advogada Cris Olivieri. Foto: Divulgação.

A morosidade, quase paralisação, da atuação da Secretaria Especial da Cultura na implementação dos procedimentos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) – antiga Lei Rouanet -, impedindo inclusive a movimentação de recursos já captados por projetos aprovados, deve ter um resultado trágico para o setor cultural no Brasil. Dentro de um contexto extremamente crítico por conta da pandemia de coronavírus, a paralisia do governo federal – somada a seus ataques à classe artística e flertes com a censura – já está impactando diretamente a vida de artistas, produtores culturais e instituições ao redor do país.      

Quem faz a constatação é a advogada Cris Olivieri, especialista em mercado e políticas culturais e diretora do Olivieri Associados, escritório especializado em consultoria jurídica para cultura e entretenimento. “Não tenho a menor dúvida de que muitas instituições vão morrer por isso. Eu sou da geração em que se falava do engenheiro que ‘virou suco’. E agora teremos o artista que ‘virou suco’, o produtor cultural que vai ‘virar pão’”, diz Olivieri. Para ela, o argumento da Secretaria – hoje comandada por Mario Frias – de que a desaceleração na análise de projetos se deve à pressão do Tribunal de Contas da União (TCU) pode ter base real, mas não justifica a situação. “O papel dele como secretário é fazer com que a política cultural funcione, que esse mecanismo seja realizado. Se ele não o fizer, será responsabilizado por omissão.” O fato, segundo ela, é que nada que está ligado a uma melhor formação do ser humano, como educação, esporte e cultura, é prioridade para este governo.    

Dentro de um quadro tão conturbado e ameaçador, a advogada comemora a implementação da Lei Aldir Blanc – realizada a partir de proposta do Congresso – que, além de distribuir R$ 3 bilhões para a cultura, utilizou um formato inovador para o país, no qual a união repassa as verbas para Estados e município e estes, por sua vez, repassam para as pessoas e projetos contemplados. “Essa lei deixa essa memória de que os gestores mais próximos são mais ágeis, sabem quem precisa mais de apoio. Assim, foi criado esse sistema nacional de cultura que há anos vem sendo discutido e agora tem seus canais prontos. Então é uma ação vencedora e o ideal seria que no futuro tivéssemos uma espécie de ‘fundo eterno’ Aldir Blanc para o fomento à cultura no país.” 

Como possíveis caminhos para os agentes culturais, Olivieri aponta os editais e leis de incentivo municipais e estaduais, alguns editais privados e até mesmo a filantropia – que deve diminuir no momento em que a cesta básica é algo cada vez mais emergencial. A advogada indica também a existência de fundos internacionais voltados à cultura, que devem olhar com mais atenção para o Brasil neste contexto crítico e que podem ser uma alternativa especialmente para instituições. E, mesmo com as dificuldades, Olivieri sugere que não se abra mão da lei federal: “É preciso continuar pleiteando e tentando convencer o governo de que a cultura é importante. E se ele não entende a parte mais lúdica, vamos tentar fazê-lo entender a parte social e econômica”, diz ela sobre um setor que representa 2,6% do PIB do país e gera mais de 1 milhão de empregos. Leia abaixo a íntegra da conversa.

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Exposição montada na Pinacoteca Diógenes Duarte Paes, em Jundiaí, com recursos da Lei Aldir Blanc. Foto: Divulgação

ARTE! – Como você mesma tem alertado, estamos acompanhando nos últimos tempos uma paralisia no setor cultural, especialmente por conta de uma falta de ação do governo federal. Então eu gostaria de começar perguntando o que está acontecendo e quais os principais motivos que estão gerando esta paralisia.

As ações culturais no Brasil sempre foram majoritariamente custeadas pelo incentivo fiscal federal – a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), antiga Lei Rouanet. Dentro disso, existe já um processo estabelecido e conhecido pelas empresas, produtores e instituições culturais sobre como esse financiamento funciona. E há toda uma construção de políticas, programas, projetos e projetos de inclusão feitos com esse tipo de financiamento. O que aconteceu mais radicalmente a partir do final de dezembro foi uma morosidade, quase uma paralisação, da atuação da Secretaria Especial da Cultura, não só na aprovação de projetos novos – e o impacto disso veremos mais no final do ano, quando esses projetos não existirem para fazer captação -, mas especialmente no não encaminhamento dos projetos que já captaram. Antigamente era um procedimento já azeitado, que passava pela avaliação técnica e a partir daí entrava nas reuniões das comissões para aprovação. Mas isso passou a não acontecer. Então temos uma grande quantidade de projetos que já captaram recursos, incluindo muitos planos anuais com atividades que já começaram em janeiro, e que não conseguem acessar esse dinheiro que foi captado porque os prazos de homologação, liberação de captação e transferência de recursos estão todos atropelados, tudo meio parado.          

ARTE! – O governo argumenta que há uma imposição do Tribunal de Contas da União (TCU) para a redução de análise de projetos e fala também das dificuldades por conta do lockdown. Isso justificaria essa paralisação?

Existe realmente um processo de discussão da análise da prestação de contas pela secretária – podemos falar mesmo de quando era ministério, porque isso é um processo antigo – e o Tribunal de Contas vem, com razão, pressionando os gestores para que eles tomem uma providência, para que não se tenha esse passivo de prestação de contas tão grande e para que essas análises sejam feitas. No passado, já houve ano em que foi analisada uma única prestação de contas, o que é uma loucura. E já se tentou vários procedimentos. Acho que o mais eficiente, que é o que está sendo adotado nos últimos quatro anos, é o uso da tecnologia, a digitalização do processo todo, que permite cruzamento de informação, conexão direta com o banco, controle de contas etc. Então o TCU está pressionando o secretário atual [Mario Frias], assim como pressionou os anteriores, neste sentido. Não se pode aprovar um monte de projetos e não dar conta da prestação de contas. Dito isso, o argumento de que então só se pode aprovar uma quantidade bem menor de projetos não está correta. Porque o secretário é responsabilizado pelo TCU se ele não der conta das análises de prestação de contas, mas ele também será responsabilizado se ele não der conta de fazer acontecer a política cultural que existe, orientada por uma legislação que está implantada. Porque o papel dele como secretário é fazer com que a política cultural funcione, que esse mecanismo seja realizado. Então é uma escolha que não olha o todo, querer apenas se livrar do TCU. E aí ele vai ser responsabilizado por omissão.    

ARTE! – E para além dessa argumentação técnica, é impossível não pensar na relação quase de confronto que este governo estabeleceu com a classe artística, com o setor cultural. Isso se vê nos discursos, na diminuição de patrocínios, no rebaixamento do Ministério da Cultura para Secretaria, nas tentativas de cortes no Sistema S, entre outras coisas. O que está acontecendo, portanto, não parece ser parte de um “projeto anti-cultura”, digamos assim?

Acho que existem duas coisas. Primeiro a demonização da Lei Rouanet, que não começou com esse governo, vem já inclusive do governo do PT. Porque do ponto de vista do ministro, ou hoje do secretário, há um sentimento de perda na relação com o incentivo fiscal. Porque na Lei Rouanet, neste ano por exemplo, você tem uma renúncia de cerca de R$ 1,4 bilhão, enquanto a Secretaria não chega a ter R$ 400 milhões de orçamento ao ano – que é gasto na manutenção. Então ao gestor sobra pouco espaço para criar e implementar políticas públicas. E às vezes ele se torna um oponente do incentivo fiscal porque acha que aquele dinheiro deveria ir para ele. Mas não é isso que ocorre, porque são duas coisas distintas, a verba para a cultura e o incentivo fiscal. Então há alguns anos começou essa demonização, com argumentos totalmente equivocados. Esse dinheiro não vai direto para o artista, como dizem quando falam da “mamata” – existe inclusive a limitação de cachês em R$ 30 mil. Ele, na verdade, possibilitou a implementação de uma série de museus, centros culturais que usam a arte para inclusão, instituições sem fins lucrativos e assim por diante. E essa percepção equivocada começou antes, mas persistiu na campanha eleitoral, com ataques aos artistas. Para além disso, esse não é um governo especialmente humanista. Tudo que está ligado a uma melhor formação do ser humano, como educação, esporte e cultura, nada disso é prioridade.

ARTE! – É uma situação sem paralelos na história recente do país?

Eu acho que até a chegada deste governo existia dentro do Ministério, ou Secretaria, um procedimento de azeitar mais as coisas, para que todos os procedimentos ficassem mais rápidos e mais transparentes. E inclusive quando você digitaliza tudo, fica também mais transparente. E estávamos nesse caminho. O que acontece agora, num sentido contrário ao da transparência e democratização, é que além da paralisação, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura não foi renomeada – ela é formada por integrantes da sociedade civil e junto à Secretaria homologa os projetos. O secretário foi alertado diversas vezes de que é preciso fazer um edital para a nomeação da nova comissão, mas ele não o fez. E a notícia que se tem é de que o secretário disse que agora vai aprovar por referendo. Ou seja, que não vai existir essa comissão, que sempre trouxe um balanço, uma inteligência, a experiência de pessoas que trabalham na área, e que é o secretário quem vai aprovar ou não os projetos.

ARTE! – Com o perigo de se tornar algo totalmente arbitrário…     

É um perigo como conceito, independentemente de qualquer governo, fosse ele de esquerda, direita ou centro. Quanto mais as decisões são colegiadas, menor o risco de erros, maior a chance de minimizar qualquer tipo de privilégio ou dirigismo. 

ARTE! – Neste sentido, tivemos o veto ao projeto do plano anual do Instituto Vladimir Herzog na Lei de Incentivo à Cultura pela primeira vez em dez anos. Podemos considerar este um caso de censura?

É o que tudo indica… Porque, justamente, se você pensar que o instituto tem o seu plano anual aprovado já há mais de dez anos, e é uma instituição que trabalha com humanidades – jornalismo, exposições, materiais para escolas, livros -, sempre vinculada aos direitos individuais, não teria motivo para não ser aprovado. E, na verdade, já estava aprovado quando de repente se voltou atrás. Então existe aí uma coisa esquisita. 

ARTE! – Falando agora sob uma ótima mais econômica, você mostrou em texto recente publicado na revista Quatro Cinco Um que as atividades ligadas à produção cultural, para além de sua importância por si só, são de grande relevância para a economia, representando 2,6% do PIB e gerando mais de 1 milhão de empregos. Nem mesmo este ponto de vista tem sido suficiente para convencer o governo e setores da sociedade da importância da cultura?

Já está demonstrada toda a importância da economia criativa e da produção cultural no país. É muito triste imaginar que o Brasil, que tem a criatividade no seu DNA, tenha tão poucas políticas para reforçar isso. Porque, além de tudo, é uma atividade limpa, de fácil exportação e que divulga o país como um todo. Não é à toa que os EUA investiram tanto no cinema, com a difusão do american way of life, assim como a Inglaterra nos últimos 15 anos tem investido assustadoramente na economia criativa. Porque qualifica as pessoas, tem um impacto grande e rápido na economia – por ser muito vinculado à área de serviços -, não polui. Ou seja, há uma série de vantagens que não estão sendo consideradas nessas decisões de paralisia das atividades. Não tenho a menor dúvida de que muitas instituições vão morrer por isso. Eu sou da geração que se falava do engenheiro que “virou suco”. E agora a gente vai ter artista que “virou suco”, vai ter muito produtor cultural que vai virar pão… Que é que muitos estão fazendo para sobreviver: pães, comidas. Porque não conseguem trabalhar em suas áreas nessa época em que estamos todos em isolamento e os recursos que existem estão paralisados. Inclusive a captação pela LIC no final do ano passado foi inesperada, positivamente, porque acho que as empresas já têm isso no seu DNA. Vimos isso com vários clientes do nosso escritório, que queriam fazer o dinheiro chegar às instituições. E esse movimento, ao invés de estimulado, está sendo paralisado, o que não faz sentido. Inclusive, se você pensar de uma maneira mais genérica, se esse dinheiro chega às mãos das pessoas é um “problema” a menos para o governo. É menos gente precisando de apoio emergencial, por exemplo, pois as pessoas continuam com suas atividades. Represar esse dinheiro não traz nenhuma vantagem.        

ARTE! – O principal auxílio para a cultura que tivemos durante este período de pandemia foi a Lei Aldir Blanc, que liberou R$ 3 bilhões de reais para Estados e municípios. Ele está sendo eficiente?

Foi um ganho muito grande para o segmento. É uma lei que foi proposta e aprovada pelo Congresso, ou seja, não tem uma relação direta com o poder executivo. O governo teve que encarar, e inclusive burocratizou coisas que não precisavam. Mas foi muito positiva essa lei, inclusive pensando no histórico que ela vai deixar. Porque o formato utilizado foi muito inovador para o Brasil. Não foi um dinheiro distribuído diretamente pela União para os projetos, mas distribuído para os Estados e municípios. Assim se criou esse sistema nacional de cultura que há anos vem sendo discutido e agora tem seus canais prontos. É uma grande evolução, porque é muito mais fácil para o secretário da cultura de São Paulo criar formas de distribuir esse dinheiro dentro da cidade do que um cara lá em Brasília, que não conhece a realidade local. E falo de São Paulo ou de qualquer outra cidade. Então é uma ação vencedora e o ideal seria que no futuro tivéssemos uma espécie de “fundo eterno” Aldir Blanc para o fomento à cultura no país. 

ARTE! – Falando sobre um caso específico do Estado de São Paulo, o ProAC ICMS foi substituído, em janeiro deste ano, pelo ProAC Expresso Direto. Isso pegou muita gente de surpresa e foi criticado por agentes do setor cultural. Como você vê essa mudança?

Nós vemos com bastante surpresa, tentando encarar como algo que vai ser revertido para os próximos anos. Existem conversas sendo feitas com o governo do Estado para que se entenda que essa mudança não é o melhor caminho. O que parece é que eles precisavam acertar um pouco o caixa tributário e fizeram uma conta que, entre aspas, seria a mesma coisa. Como se trocar R$ 100 milhões de renúncia fiscal por R$ 100 milhões em um edital fosse igual, mas não é. Porque no ProAC ICMS, assim como na Lei Rouanet, você já tinha um processo todo estabelecido. Várias instituições, inclusive no interior do estado – com programas estabelecidos de inclusão, projetos de arte-educação, prêmios etc. – já tinham patrocinador e anos sendo realizados. Com o ProAC Direto não se sabe se terão os recursos. E existem vários projetos que foram aprovados no final do ano passado que já haviam captado uma porcentagem de sua verba e tinham o compromisso de captar o restante esse ano. Enfim, coisas que ficaram pelo caminho. Então eu imagino que o ProAC Direto vai tentar fazer um tipo de compensação – existe a promessa de realização de um edital para dar conta do mesmo tipo de projeto que era incluído no ProAC ICMS -, mas a gente entende que é preciso voltar a ser como era, porque quanto mais diverso for o financiamento para a cultura, melhor. Então o ideal é que tenha dinheiro público, incentivo fiscal, bilheteria, doação de particulares e assim por diante. A gente não pode correr o risco de perder o apoio das empresas. E por isso já existe uma comissão tentando negociar para que essa mudança seja revertida

ARTE! – Por fim, pensando neste contexto todo de que falamos, quais são as alternativas que você enxerga para produtores culturais, artistas e instituições no momento? Ou seja, entre editais, prêmios, setor privado, políticas de Estados e prefeituras, aonde é possível buscar apoio e financiamento?

Nós temos visto que secretários de cultura de muitas cidades têm tido um papel importante. Se nós pegarmos especificamente o caso de São Paulo, o dinheiro da Lei Aldir Blanc foi distribuído em outubro. A Secretaria teve esse foco de fazer a coisa acontecer de maneira muito rápida. Então acho que estamos aprendendo com a pandemia, e essa lei deixa essa memória, que os gestores mais próximos são mais ágeis, sabem quem precisa mais de apoio. E temos visto cidades – posso citar também Niterói, Fortaleza, São Luís, entre outras – que logo no início da pandemia já saíram com editais importantes, que ainda estão acontecendo. Então esse é um caminho. Além dos editais públicos, existem também os privados, que têm funcionado, mesmo que com valores menores. Quanto aos incentivos fiscais, existem os municipais e existem os estaduais de ICMS – que, tirando São Paulo, seguem ativos. Há também o caminho das doações, da filantropia, mas isso eu não sei quanto tempo vai durar. Porque no momento a cesta básica é algo emergencial, e me parece provável que as pessoas doem mais para comida do que para os projetos culturais. E mesmo que a lei federal de incentivo à cultura esteja atravessando esse momento difícil, acho que é preciso continuar pleiteando e tentando convencer o governo de que isso é importante. Agora, nós trabalhamos com arte. E a arte incomoda – não só esse governo -, isso faz parte. Mas, no caso, esse é também um governo pouco sutil… E arte tem sutileza, poesia, mas esse governo não tem muita poesia, não vê utilidade nisso. Enfim, é difícil, mas é preciso seguir tentando. E é aquilo que falamos, de que se o governo não entende a parte mais lúdica, vamos tentar fazê-lo entender a parte social e econômica. Há uma série de instituições culturais focadas na inclusão da criança e do adolescente e não é possível que isso não seja prioridade para qualquer governo. Existem instituições que garantem a alimentação dessas pessoas…     

Por fim, existe um outro caminho, especialmente para quem está estruturado, como instituições, que é um dinheiro internacional, dos fundos internacionais. Para conseguir acessar esse tipo de financiamento é preciso um bom planejamento, pois há uma série de regras, formulários etc., mas é um apoio que existe e que provavelmente virá mais para o Brasil. Porque quando o Brasil estava “bombando” começou a se pensar que nós não precisávamos mais desse apoio. Mas agora voltamos a ser vistos como um país que precisa. Então UNESCO, Ford Foundation, várias instituições voltadas para a América Latina, entre outras, podem ser uma forma de ajudar a atravessar esses tempos difíceis.        

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