Ao desenvolver uma poética ligada à elementos da cultura africana e afrobrasileira – passando pelo universo mitológico do candomblé e levantando debates sobre escravidão e racismo -, o artista visual Ayrson Heráclito assistiu, ao longo de décadas, sua obra ser enquadrada basicamente como exótica e primitiva. Segundo o próprio artista, nascido em Macaúbas (BA) e atuante desde meados dos anos 1980, “o meu trabalho era visto, através de um filtro da tradição hegemonicamente masculina, patriarcal, branca e colonial, como uma produção demasiadamente regionalista e folclórica, distante da ideia de contemporâneo”.
Ao longo do tempo, especialmente nos últimos anos, temáticas ligadas às tradições africanas e afrodiaspóricas, assim como o debate sobre racismo estrutural, passaram a ocupar espaço crescente no mundo das artes, pautando – ainda que de modo incipiente – a programação de galerias, museus e instituições culturais. “E assim o sistema de arte brasileiro foi abrindo espaço para que eu me tornasse contemporâneo”, diz Heráclito. “Porque antes tudo que era produzido por pretos e índios era observado apenas pelos antropólogos. E eu sempre reivindiquei que a arte preta fosse reconhecida como uma produção do simbólico assim como todas as outras, e não vista com esse olhar etnográfico que estuda o ‘outro’ através de uma visão ocidental.”
Dentro do panorama descrito pelo artista, uma das poucas instituições do país que se voltou, ainda nos anos 1980 e 1990, para esta produção dita “exótica”, reconhecendo-a como arte contemporânea, foi a Associação Cultural Videobrasil. “Nenhuma outra instituição brasileira, pelo menos que eu tive contato, produziu tamanho debate neste sentido. Foi ela, inclusive, que possibilitou grande parte das conexões culturais que eu estabeleci com a Africa”, afirma Heráclito.
É justamente na nova plataforma da associação, o Videobrasil Online, que Ayrson Heráclito acaba de inaugurar sua primeira exposição virtual. Com dez obras audiovisuais produzidas pelo artista entre 2004 e 2018 e um vídeo inédito de apresentação, Sacudimentos tem curadoria de Solange Farkas, fundadora e diretora da instituição, e é a segunda mostra apresentada na plataforma (leia aqui sobre Abdoulaye Konaté – Cores e Composições). “O Ayrson tem uma trajetória extraordinária para o cenário das artes, com uma contribuição muito particular às práticas descoloniais”, diz Farkas. “Sacudimentos pontua o trajeto de um artista que mobiliza o sentido transformador dos ritos de matriz africana em resistência à herança colonial.”
Para Heráclito, a mostra virtual é uma experiência nova e desafiadora, “já que são trabalhos pensados para serem expostos em uma espacialidade física, por vezes com várias telas, e que agora são apresentados no universo online”. “Então estamos tentando, virtualmente, criar também jogos de telas, trazendo a ideia de instalação para dentro do site”, explica. Ele destaca, ainda, que obras muito pouco vistas, por vezes expostas apenas fora do Brasil, estão agora disponíveis no Videobrasil Online.
A memória colonial no presente
Um dos trabalhos criados originalmente em dois canais é justamente o que dá nome a mostra, a instalação Sacudimentos, produzida por Heraclito em 2015 a partir de uma residência artística concedida pelo Videobrasil em parceria com o Raw Material Company, em Dacar (Senegal). Filmado primeiramente na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal, e depois na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, o trabalho registra rituais de limpeza e cura espiritual – os sacudimentos – realizados pelo artista em dois locais ligados ao comércio de escravos. Em uma espécie de performance de limpeza dos espaços arquitetônicos, na busca por afastar espíritos que seguem atormentando o presente, Heráclito traz à tona a necessidade de se olhar para o passado colonial que moldou sociedades nos dois lados do Atlântico.
“No meu trabalho, o sacudimento é também uma tática de retornar ao passado afim de sacudir a história, promovendo uma ‘movência’ dos nossos traumas. É uma forma de gerar uma visibilidade para questões que tradicionalmente foram ocultadas, como o processo de desumanização da população africana escravizada”, explica o artista. “A ideia é que esse passado se cure, de certa forma, e que a lógica desse passado não se repita. Eu sempre digo que a minha tática de sacudimento é para afugentar esse monstro, esse fantasma que até hoje nos persegue, que é o fantasma do senhor de escravo”, conclui.
A ideia de enfrentar as mazelas “sem que você adoeça, mas, pelo contrário, para que você se cure” – inspirada no pensamento do artista alemão Joseph Beuys – se relaciona também à percepção de que o mito da democracia racial no Brasil sempre foi um discurso utilizado pelas elites contra a população preta. Em um contexto de intensificação das lutas antiracistas em diversos países, concomitante ao crescimento da extrema-direita ao redor do mundo, Heráclito ressalta que uma guerra que sempre existiu apenas está mais escancarada. “O que a gente vive hoje é um mundo de guerras e tensões. E não existe mais a ideia de que o Brasil é mestiço e pacífico. O Brasil está em luta, em guerra, como sempre esteve, e essas pessoas e instituições que defenderam esse tipo de apaziguamento estão tendo que se ajustar ou estão perdendo totalmente o sentido, sendo colocadas de escanteio.”
Em tempos de destruição acelerada de florestas e ecossistemas, em que debates sobre o Antropoceno ganham espaço, Heráclito reforça ainda que um olhar para as culturas de matriz africana fornecem outras formas de se relacionar com a natureza. Ao trabalhar, em vídeos e performances, a partir de materiais orgânicos e alimentos como o dendê, o açúcar e a carne, o artista apresenta um dos pilares das culturas de origem Iorubá, Bantu e Fon: “O mundo é como um corpo, um ser vivente. E em meu trabalho toda a utilização dos materiais orgânicos, que são associados às práticas de alimentar as divindades e a natureza, tem a ver com o fato de que a natureza é quem nos dá de comer, é esse sujeito maior que nos guia, nos orienta, nos propicia a vida. E são os elementos da natureza que nos deixam potentes para, por exemplo, transmutar essa ideia de cicatriz, de dor, desse passado colonial que reduziu todo esse conhecimento à ideia de feitiçaria e de macumba”.