Page 57 - ARTE!Brasileiros #38
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se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível
da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência”,
edição Perspectiva S.A. 1978 (Foucault, pág. 17, 1972).
Ao lado dos barcos de Arthur Bispo do Rosário (1911-
1989) – paciente psiquiátrico diagnosticado como esqui-
zofrênico-paranoico que ficou internado por 50 anos na
Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e deixou uma
obra inestimável, hoje no acervo do Museu do Incons-
ciente – contracena a instalação de Bernardo Damasceno,
o Mar Vai Virar Sertão, fazendo um jogo de palavras
com sua obra original O Sertão Vai Virar Mar, exposta
no Dragão do Mar, em Fortaleza. Juntos, os trabalhos
aludem à frase “O sertão vai virar mar e o mar vai virar
sertão”, atribuída ao líder religioso Antônio Conselheiro.
O delírio de um e a fantasia do outro se encontram na
mesma linguagem conceitual.
Na obra Razão/Loucura (1976), Cildo Meireles, que a refez
especialmente para a exposição, chegou a quebrar algu-
mas varas de bambu ao tensioná-las. A obra é um díptico.
Em Razão, há uma chave presa a uma corrente fora do
alcance de um cadeado. Em Loucura, a corrente alcança
o cadeado e consegue transpassá-lo e, portanto, abri-lo.
Outro eixo para pensar a exposição foi a importância de
discutir a segregação do artista que é paciente psiquiá-
trico em relação ao mercado. “A ideia de por que Clovis
(paciente e artista do ateliê Gaia) seria segregado por ser
um paciente psiquiátrico, pobre.” Para ele, suas escul-
turas são vivas. Na imagem no canto inferior esquerdo
da página 54, a escultura tem a topologia de um carro,
embora para Clovis ela não o seja. Para o artista, “o
carro é um coração”. O Ateliê Gaia funciona no Museu
Bispo do Rosário, onde pacientes ocupam um espaço de
criação e geram renda com a venda das obras.
Luiz Carlos Marques, outro paciente do Gaia, mostra
seu trabalho em cadernos e fala sobre a obra como uma
provocação. “Veja, ele (o caderno) começa de um jeito
e, depois, vira, e você vê as mesmas imagens de ponta-
-cabeça”, diz. “É uma página virada, uma provocação.”
Desenhos e trabalhos de alunos e pacientes do educador PÁGINA VIRADA CADERNOS DE DESENHO, LUIZ CARLOS MARQUES
francês Fernand Deligny, que influenciou autores como
Gilles Deleuze e Guatarri, conversam na diagonal do salão
com as teias do artista Carlos Bevilacqua. Os vídeos da
psicanalista Miriam Chnaiderman, Dizem que Sou Louco,
produzidos em 1994, e de Dora Garcia, Maioria Desviante
– de Basaglia ao Brasil (2010), mostram o cuidado e a
amplidão da pesquisa.
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Book_ARTE_38_POR.indb 57 3/3/17 9:49 PM