Page 52 - ARTE!Brasileiros #38
P. 52

EXPOSIÇÃO RIO DE JANEIRO






             TODOS NO MESMO BARCO





             COMO PARTE DO PROGRAMA ARTE E SOCIEDADE NO BRASIL III, O MUSEU DO
             RIO DE JANEIRO INAUGUROU EM FEVEREIRO UMA MOSTRA DEDICADA AO DELÍRIO


             TEXTO E FOTOS PATRICIA ROUSSEAUX




             DOIS ANOS ATRÁS, o então diretor cultural do Museu de   compartilhada. Ela abre janelas na vida cotidiana e nos
             Arte do Rio, Paulo Herkenhoff, idealizou uma mostra par -  convida a construir novos mundos”, diz a curadora.
             tindo da hipótese de que existe uma linha tênue entre razão   “A intenção é colocar em suspenso a delimitação
             e loucura, o senso e o dissenso ou mesmo o nonsense.   entre o normal e o dito ‘louco’. A arte e a loucura têm
             A seu convite, Tania Rivera, psicanalista e curadora cuja   em comum a força de transformação da realidade”,
             tese de doutorado na Bélgica foi sobre a psicose, desenvol  diz. “Acabei fazendo um recorte na obra do Bispo do
                                                           -
             veu, ao longo desses dois anos, uma pesquisa que coloca  Rosário, por exemplo, ligado a sua produção com bar-
             em diálogo obras produzidas por pacientes psiquiátricos   cos. No mar precisamos de barcos para não afundar”,
             e criações de artistas consagrados cujas obras recu-  diz, associando a palavra “mar” às iniciais do museu
             sam vias tradicionais de representação ou questionam   onde a exposição é realizada (MAR).
             o que é chamado de loucura.                                               Tania lembra que barcos
             O corolário desse percurso                                                são frequentes no imagi-
             é a exposição Lugares do                                                  nário da loucura, a exemplo
             Delírio, que fica em cartaz                                                de passagens que Foucault
             até 18 de junho. A mostra                                                 dedicou à sua História da
             apresenta mais de 150 tra-                                                Loucura na Idade Clássica,
             balhos, entre instalações,                                                um estudo sobre a exclu-
             performances,  pinturas,                                                  são e perseguição do “não
             esculturas  e  desenhos.                                                  igual”.  “É  para  o  outro
             Estão presentes obras de                                                  mundo que parte o louco
             Fernando  Diniz,  Raphael                                                 em sua barca louca; é do
             Domingues e Geraldo Lucio    A NAVE DOS LOUCOS A CAMINHO DO PAÍS DOS TOLOS, GRAVURA EM MADEIRA DE 1549  outro mundo que ele chega
             Aragão, do Museu do In -                                                  quando desembarca. Essa
             cons ciente, criado em 1952, no então denominado   navegação do louco é simultaneamente a divisão rigo-
             Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro,   rosa e a passagem absoluta. Num certo sentido, ela não
             pela psiquiatra Nise da Silveira, que considerava a   faz mais que desenvolver, ao longo de uma geografia
             esquizofrenia um dos “estados inumeráveis do ser”.  semirreal, semi-imaginária, a situação liminar do louco
             O que há de delirante na arte e o que há de reflexão   no horizonte das preocupações do homem medieval –
             sobre a arte na loucura foram questões que orientaram   situação simbólica e realizada ao mesmo tempo pelo
             a pesquisa. Outra determinante foi tentar romper o   privilégio que se dá ao louco de ser fechado às portas da
             confinamento da produção dos pacientes psiquiátricos   cidade: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e
             e discutir sua representatividade em paralelo com a arte   não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram -
             exposta em circuitos tradicionais de galerias e museus.   -no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do
             “A arte parece sempre querer fugir à norma, ou seja,   exterior, e inversamente. Postura altamente simbólica
             ao hábito e às regras que delimitam nossa realidade   e que permanecerá sem dúvida a sua até nossos dias,


            52




         Book_ARTE_38_POR.indb   52                                                                              3/3/17   9:48 PM
   47   48   49   50   51   52   53   54   55   56   57