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ENTREVISTA  ANNE LAFONT













               jovens muito mais interessadas nesses assuntos.      –  Em todo o mundo, tem havido grande
              Já no universo dos curadores de museus, demorou   visibilidade para artistas negros que tematizam
               um pouco mais. Foram antes de tudo historiadores   problemas históricos e contemporâneos da negri-
               e antropólogos que realmente se interessaram pelo   tude, eles próprios resultantes diretamente de
               meu trabalho, e por isso que fui contratada pela   processos coloniais. Assistimos também a um
               École des Hautes Études en Sciences Sociales   boom no mercado, com um maior número de
               em Paris, um instituto de estudos avançados com   galeristas, incluindo negros, cujos portfólios são
               pesquisadores que são antropólogos, filósofos,  dedicados a artistas africanos ou da diáspora. As
               sociólogos, historiadores, historiadores da arte.  instituições e os seus curadores estão seguin-
               As coisas estão começando a mudar, mas é um   do a tendência que atualmente parece estar a
               processo um tanto mais longo.                pasteurizar o ecossistema artístico em todo o
                                                            mundo. Grandes conglomerados de luxo contra-
                    –  Nos últimos anos, a teoria racial crítica   tam esses artistas para colaborações de moda.
            ganhou força nas universidades e chegou até às   Como nos disse o curador e artista Kader Attia,
            redações de jornais como o The New York Times,  em entrevista: “O capitalismo tenta se recuperar,
            bem como a setores da sociedade, por meio da    através da cultura e da arte, apropriando-se de
            chamada cultura  . Entre outros autores, James   mensagens políticas, como a da decolonização,
            Baldwyn e Frantz Fanon ressurgiram. Achille     e com isso corremos o risco de que elas se insti-
            M’bembe levantou a questão da necropolítica. O   tucionalizem. Ou seja, é preciso saber cuidar da
            racismo estrutural entrou na agenda dos governos   retórica, inventar uma linguagem, vocabulários
            progressistas e até das empresas, que por vezes   sempre novos, quase novos, quem sabe abandonar
            parecem fazer um black washing – numa referência   a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo
            ao greenwashing, de uma falsa sustentabilidade  “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o
            para fins de marketing. Esta miríade de reflexões,  feminismo, por exemplo.” Você vê esse risco na
            perspectivas, proposições etc. contribui para o   produção artística negra atual, de um simulacro
            debate sobre a decolonialidade, ou pode por vezes   crescente de crítica a serviço do capitalismo, de
            criar ruídos, dissonâncias, desvios ou distrações?  um pastiche de arte decolonial?
               Anne Lafont – O debate tenta fazer barulho, provo-  Anne Lafont – A arte colonial não está mais imune
               car dissonância e distinção. O próprio debate tem   que todas as formas de arte e de valorização pelo
               ese efeito, ou seja, não podemos ter uma discussão   mercado, ou seja, seria muito ingênuo pensar que o
               aprofundada sem que se tomem posições muito     capitalismo é menos forte face aos seus pensamen-
               diferentes. É inevitável e, neste sentido, não significa   tos. O capitalismo é sempre mais forte. O esforço
               que cada indivíduo que participa do debate cause   artístico pós-colonial e decolonial está sujeito ao
               ruídos. Mas faz parte do debate, ou seja, não podemos   mesmo risco que todas as formas de arte. Não há
               levantar uma questão nova, colocar ideias novas em   razão para pensar que desta vez o mercado não iria
               pauta sem que isso faça barulho, atrapalhe a ordem   captar uma tendência que é generalizada. O risco está
               estabelecida, perturbe necessariamente a forma   sempre lá, nem mais nem menos do que todas as
               de pensar. Há todos os tipos de posições que vêm   formas de arte que se expressam, que encontram um
               alimentar este debate e, pessoalmente, individual-  alcance internacional etc. Sim, penso que é um risco,
               mente, podemos escolher uma linha muito pessoal   mas cabe aos artistas ao mesmo tempo encontrar
               e precisa, mas que faz parte de um debate muito   os meios de expressão para escapar, se quiserem
               mais acalorado, e eu não vejo como uma sociedade   fazê-lo, deste tipo de padronização por parte do
               se transforma sem fazer barulho, isso não é possível.  mercado de arte ou por parte do capitalismo.

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