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35ª BIENAL DE SÃO PAULO CRÍTICA
Gauditano feitas por dois meses em 1978, das 23h às 6h, de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes, de cerca
com as frequentadoras do Ferro’s Bar, tradicional bar de 1625, que apresenta uma imagem masculinizada de
lésbico no centro de São Paulo, uma série censurada uma monja, apontando para um sexualidade líquida já
pela revista Veja, e agora encenada com como fosse no século xvii, ao lado dos documentos do século xvi
exibida em um ambiente boêmio. Nas imagens, há que apontam a escravizada Xica Manicongo como a
uma intimidade incomum com as mulheres, em uma primeira travesti do Brasil.
época que o fotojornalismo ainda era marcado por Aliás, o retrato é o tema do vídeo Uma voz para Erauso.
frieza e distanciamento. São esses gestos inovadores, Um epílogo para um tempo trans, da dupla espanhola
mesmo que invisíveis quando realizados, que essa Helena Cabello e Ana Carceller, que há dois anos trouxe
Bienal expõe. O impossível se tornando possível por a público a complexa figura do barraco espanhol, que
pequenos movimentos. se livrou do binarismo de gênero.
Sobre silenciamento, aliás, é particularmente tocante A questão lgbtqiapn+ de fato é um eixo forte da
a seleção de trabalhos de Aurora Cursino dos Santos mostra, e outro trabalho que merece atenção é o filme
(1896-1959), que fez parte de sua produção no hospital Línguas desatadas, de 1989, feito por Marlon Riggs
psiquiátrico do Juquery, internada após uma vida que (1957-1994), um documentário autoral sobre a vida de
mesclou casamento, viagens pela Europa e prostituição. gays negros nos Estados Unidos.
Momentos de sua vida são narradas em suas pinturas, Ao reunir obras e trabalhos de distintos períodos,
que a curadoria expõe de forma a perceber como elas como esses últimos três, esta Bienal opta por ser
eram feitas sobre pacotes de chiclete. Outros internos menos explícita em relação ao tempo presente, como
em manicômios, como Stella do Patrocínio, Arthur Bispo muitas mostras deste gênero costumam fazer, mas
do Rosario e Ubirajara Ferreira Braga também com- falam de debates atuais sob uma perspectiva mais
parecem em Coreografias do impossível com amplas ampla, transformando a exposição em um contexto
séries de trabalhos. mais museográfico.
Agora, é inegável que esta Bienal também tem Essa impressão é reforçada pela própria arquitetura
uma presença retumbante da produção de dentro do da exposição. Não é fácil enfrentar o pavilhão modernista
sistema da arte, especialmente em obras de mulhe- de Oscar Niemeyer, que com sua amplitude e linhas
res como Citra Sasmita, Rosana Paulino e Carmézia curvas, tendem a dominar os espaços. O grupo de
Emiliano. A nova série de Rosana, pinturas de grandes arquitetos Vão, sabiamente, usou dessas curvas para
dimensões de mulheres que criam raízes e se mesclam questionar o próprio espaço, reorganizando o percurso
a árvores, é de tirar o fôlego, assim como também são do prédio – do primeiro andar pula-se para o terceiro
impressionantes as pinturas de Citra. A artista de Bali para se encerrar a visita no segundo andar, fechando-se
apresenta o projeto Timur Merah (Leste Vermelho), no ainda o vão central, em uma gesto radical, mas eficaz.
qual mulheres indonésias de longos cabelos negros Paredes brancas, poucas salas com intervenção
interpretam nuas vários papeis, humanos e animais, mais radical, essa é uma Bienal de muito respiro e
retomando aqui a perspectiva que faz da natureza uma grandes espaços, mas que também conduz o visitante
grande família, como em Rosana Paulino. Essa visão a ambientes mais íntimos quando necessário. É com
holística é vista também nos quadros de Carmézia, muita elegância que se aborda as mazelas do mundo
que expõe o dia a dia dos povos Macuxi, em Roraima. em (im)possíveis gestos de superação.
Aliás, há uma constelação de trabalhos indígenas, seja Elegância e crítica estão presentes nas obras sele-
nos poéticos vídeos de Aida, Edmar e Roseana Yano- cionadas de Sidney Amaral (1973-2017) para a mostra.
mami, seja nas pinturas do Movimento dos Artistas Em sua pintura O estrangeiro (2011), ele se autorretra-
Huni Kuin (Mahku), ou nas obras de Denilson Baniwa ta como um barqueiro que estaria nos subterrâneos
e Edgar Calel. obscuros do pavilhão da Bienal, sem ter a chance de
Como se percebe, a mostra é cheia de fricções, mas pertencimento a este território – daí o título da obra.
não é nada literal, o que é um alívio, já que não há um Agora em 2023, quem diria, ele não é mais um estran-
conceito que delimite como se olhar os trabalhos. A geiro, mas parte de um grande coro de corpos negros,
temporalidade também é algo relativizado na mostra, o maior que essa bienal já viu. Finalmente, o impossível
sem dispor as obras como se fizessem parte de uma ficou agora possível.
linearidade cartesiana. Um dos destaques nesse sentido
é a pintura de Juan van der Hamen y León, o Retrato Archivo de la Memoria Trans (AMT)
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