Page 40 - artebrasileiros-64
P. 40

35ª BIENAL DE SÃO PAULO  CRÍTICA








            foi justamente a “pressão” organizada das parcelas opri-  Rommulo Vieira da Conceição, artista e profes-
            midas pelo epistemicídio e pelo horror econômico que   sor baiano radicado em Porto Alegre, no sul do país,
            vem exigindo a circulação e o acesso às representações   apresenta proposições instalativas que investigam
            artísticas e intelectuais presentes nesta Bienal. Aliás, a   arquiteturas a partir da reprodução colorida de alguns
            ascensão de negras, negros, originários e outros grupos   de seus elementos. Elas existem em contraste com
            marginalizados também é devedora das conquistas de   o branco e as curvas modernas do prédio da Bienal.
            políticas públicas que recentemente promoveram ações   Conceição, afrodescendente, não replica na sua obra
            afirmativas e de reparação, notadamente visando criar  os protestos militantes. Embora existam elementos
            acesso à educação superior.                     que sutilmente sugiram sua origem étnica, não é sobre
               No centro do pavilhão térreo que dá acesso à expo- esse tema que o artista se debruça. Essa, digamos,
            sição, uma discreta estrutura branca e cruciforme sus- fronteira, que estabelece o campo da militância, da arte
            tenta, em cada uma das suas bases, uma televisão, em   participativa e do suposto formalismo apolítico é cada
            que são apresentados filmes documentários sobre a   vez mais obsoleta, pois não é exatamente de tensão que
            bailarina e coreógrafa afro-americana Katherine Dunham   trata a obra, mas da realocação, de deslocamento de
            (1909-2006). Lendária, Dunham teve, e continua tendo,  significados e de sentidos.
            um papel relevante na sua área e mesmo fora dela, já   O trabalho da fotógrafa Rosa Gauditano, por exemplo
            que teve atuação destacada na luta por direitos civis   e a propósito, amplia o debate em torno de uma história
            em seu país. Dunham, através da sua atuação nos pal- lésbica no país, mas para além disso revela a gravidade
            cos, procurou erodir e contestar a dicotomia que opõe   de uma obra até então pouco considerada. A história
            conhecimento assim chamado “erudito” àquele de   que ela apresenta a partir das suas fotos, apesar dos
            extração “popular”. Sua dança atualiza a importância   avanços observados em certos círculos, continua em
            dessa linguagem pois trata-se da manifestação que   geral na surdina. Aqui ela ganha amplitude, como se
            participa religiosa e secularmente do centro de cosmo- estabelecesse uma “zona temporária de liberdade”,
            gonias que foram duramente reprimidas, justamente   que fora desse território é interditada pela agenda dos
            por participarem de maneira constitutiva do universo   assim autodenominados conservadores.
            simbólico e cotidiano dos colonizados e oprimidos,   A sedimentação de um vocabulário que traduza
            que através da dança preservaram (protegeram) seus   as inquietações dos divergentes permitirá que ele
            corpos em sintonia com suas mentes.             seja incorporado ao repertório das ideias e ações do
               E é emblemático que neste mesmo primeiro piso   cotidiano. Banalizado, esse mesmo glossário pode
            esteja presente o trabalho do também pioneiro artista   injustamente sugerir que já existe uma equitativa
            e curador negro Emanoel Araújo (1944-2022). Falecido   representação de classe, gênero e raça no ambiente
            há exato um ano, ele também foi um dos artífices dos   da arte. Pode, pior ainda, sugerir o predomínio de um
            caminhos que nos trouxeram até aqui e a alguns dos   grupo, antes estigmatizado e relegado, sobre outro,
            resultados presentes nesta exposição.           que sempre foi incensado e super representado. Os
               Essas escolhas sugerem um projeto curatorial que   quatro curadores dessa Bienal, Diane Lima, Grada
            recusa o epistemicídio a que são submetidas as popu- Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, trazendo
            lações a que, significativamente, muitos dos artistas   para o centro do pavilhão produções historicizadas,
            presentes na mostra pertencem.                  como a de Emanoel Araújo ou em processo de his-
               No museu criado por Araújo em 2004, o Afro Brasil,  toricização, como a obra de Rosa Gaditano e Sidney
            que recentemente incorporou ao seu nome o nome de   Amaral (1973-2017), assumem o risco de sinalizar para
            seu criador, há marcada presença de obras realizadas   a necessidade de, justamente, validar a permanência
            com materiais também recorrentes nesta bienal, quais   e a circulação das experiências e histórias de hoje a
            sejam, a terra, a argila, cerâmica e madeira, além de   partir de outras que um dia também foram percebidas
            tecelagens de cunho artesanal. Materiais que, além   como divergentes.
            de constituírem obras, dão origem a tecnologias como
            aquela empregada por Denilson Baniwa na roça de milho                       Rosa Gauditano, da série
            que cultiva num dos pavilhões da exposição.                                 Lésbicas, 1976, Fotografia

            40
   35   36   37   38   39   40   41   42   43   44   45