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35ª BIENAL DE SÃO PAULO  CRÍTICA








                                                       A expansão do léxico e a consolidação
                                                       das gramáticas divergentes

                                                       por claudinei roberto da silva


                    A DANÇA DO POSSÍVEL






            a maneira como percebemos a realidade da vida em   lograram desenvolver léxicos, tecnologias, discursos e
            sociedade é dialeticamente afetada pelas experiências   práticas de resistência e repelência à violência, simbólica
            que nela desenvolvemos, pela multiplicidade das rela- e, às vezes, letal, a que estiveram e ainda estão expostos.
            ções construídas e das hierarquias produzidas e esta-  O título que nomeia a mostra bienal de São Pau-
            belecidas nos territórios regidos pelo capitalismo em   lo, Coreografias do impossível, sugere, claro, uma gama
            sua versão periférica. Se existir um consenso qualquer a   variada de interpretações, entre elas aquela que, presu-
            propósito dessa 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias   mivelmente, pondera sobre a irrupção de uma produção
            do impossível, ele, provavelmente, confirmará, ou não, a   que, contrariando certa expectativa reacionária, não
            ascensão das sensibilidades contra-hegemônicas, que   foi interrompida, apesar dos ingentes esforços que
            repelem e resistem a outras vocações disciplinadas pela   diuturnamente tem promovido contra ela.
            heteronormatividade excludente e, por consequência,   Se instituições como a Bienal de São Paulo, e os
            racista, xenófoba, frequentemente misógina e infali- grandes museus e as instituições análogas da cidade
            velmente homo e transfóbica.                    e do país, têm o condão de projetar o poder político,
               Esse léxico prospectado para a construção das   econômico e simbólico da classe, do gênero e da raça
            narrativas constituídas a contrapelo do poder é, na sua   de quem, afinal, organiza e patrocina eventos dessa
            forma afirmativa, historicamente novo, um conjunto de   magnitude, isto não acontece à revelia e à margem da
            conceitos que participam da pretensão de ultrapassar  vontade de outros grupos, mas, pelo contrário, sinaliza
            crônicas até aqui consolidadas, permitindo assim a revi- para um processo de disputas que vai exigindo revisão de
            são paulatina de programas tidos como paradigmáticos.  práticas (e de acervos) concomitante ao aprofundamento
               Nas experiências nascidas do enfrentamento à necro- de teses que resultem em ações mais democráticas e,
            política (definição de Achille Mbembe) não é insignifi- por isso, mais inclusivas. Não é, portanto, destituída
            cante que as periféricas instituições socioculturais do   de sentido a presença nos pavilhões dos movimentos
            país se apresentem, em maior ou menor grau, e a partir  sociais e seus análogos, como o Quilombo Cafundó, a
            de suas vocações e atributos constitucionais, como   Cozinha Ocupação 9 de Julho, MTST (movimento dos
            territórios eróticos e erotizantes, simbolica e sincreti- trabalhadores sem teto) que não se confundem, mas
            camente. Exu deus afro-atlântico e Eros – personifica- reiteram potências que outras estratégias no campo da
            ção grega do desejo, que, como Exu, é mensageiro da   arte já vinham evidenciando vide a Frente 3 de Fevereiro,
            fertilidade – unem-se na oposição a Tânatos, regente   aliás participante da Bienal.
            da morte e de suas pulsões.
               Essa opção se explicita em organizações como os   reparação
            quilombos e aldeamentos, mas também nos museus   Não se deve exagerar sobre o caráter supostamente
            de comunidades e favelas, que os há em várias formas e   liberal da instituição que franqueou ao público o
            feitios como, por exemplo, a interessante Comunidade   acesso a obras de teor contestatório, pelo contrário,
            Cultural Quilombaque, criada em 2005 no bairro de
            Perus, na região Noroeste de São Paulo. Eles e seus                Seu Jovenil segurando o retrato do seu
            congêneres, não apenas sobreviveram à necropolítica                tio Otávio Caetano, mestre da cupópia
            que pauta nosso cenário histórico, mas, além disso,                e festeiro da comunidade, sem data

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