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A DESCOLONIZAÇÃO NA 32ª BIENAL DE SÃO PAULO
POR PEDRO DE NIEMEYER CESARINO FRAME DE FILME DO VÍDEO NAS ALDEIAS
HÁ MAIS DE 50 ANOS, o antropólogo Claude Lévi-Strauss de protagonismo que a arte pode ter nestes tempos conturbados.
observava que a aparente singeleza tecnológica das sociedades A presença do Vídeo nas Aldeias é significativa. O seu mérito
indígenas implica, na realidade, mundos voltados para “uma está em extrapolar a figura do criador individual – Vincent Carelli
vida que vale a pena ser vivida”. Essa singeleza, na realidade, – para se transformar em um agenciamento coletivo. Seus
é um efeito da miopia moderna, cuja ideia de desenvolvido projetos permitiram que, pela primeira vez em nossa trajetória
nos conduz cada vez mais para o abismo. A suposta conquista de dominação, os povos indígenas tomassem as rédeas das
do desenvolvimento, dizia ainda Lévi-Strauss (em “As tecnologias audiovisuais e transportassem para elas os seus
descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico critérios, que não desapareceram com os novos instrumentos
e social”), só existe por causa da destruição das sociedades visuais, mas, antes, os traduziram de maneira singular. Uma
indígenas, pelo saque de seus recursos minerais e territoriais; atenção maior às formas de pensamento presentes nos filmes do
um saque de seu próprio corpo – a Terra, Pachamama –, que os Vídeo nas Aldeias poderia, também, oferecer elementos diversos
modernos separam de si e submetem à sua voracidade produtiva. para uma alternativa mais duradoura (e quiçá mais feliz) do
A reversão de tal processo é responsabilidade de todos político, fracassado na versão “homem branco falogocêntrico”.
os agentes pensantes contemporâneos, ainda mais em tempos O trabalho da colombiana Carolina Caycedo colhe igualmente
obscuros. É tarefa de artistas, curadores, intelectuais e escritores seus frutos do engajamento ativista que, se não realça o (também
envolvidos em urgências cuja transversalidade não pode ser importante) papel do artista individual, nem por isso despreza
compreendida como mera intromissão ideológica na esfera da a poiesis, ali capaz de produzir uma reflexão contundente
arte; como suposto desvio da atenção do público de grandes sobre a contenção dos fluxos. É o que vemos nas montagens
exposições tais como a Bienal – aliás, recorde na presente edição. fotográficas de barragens (metáforas para represamentos
Entretanto, é curioso que a autonomia da arte, mesmo dissolvida diversos, políticos). É o que se destaca, também, na série que
há tempos, pareça sobreviver na cabeça de críticos brasileiros. compreende a narrativa visual Watu e seu diálogo com as escritas
Para Rodrigo Naves (em artigo no jornal O Estado de S.Paulo, pictográficas ameríndias, tanto do ponto de vista da construção
em 20 de setembro de 2016), quando se afasta uma “visão plástica quanto do texto, que incorpora as especulações
paternalista do povo brasileiro”, supostamente presente cosmológicas indígenas sobre o desastre ambiental do Rio Doce.
na 32ª Bienal de São Paulo, é que surgem os poucos momentos De toda forma, a presença de pensadores das formas expressivas
convincentes “em que se incorpora com perspicácia a criação – o que me parece mais amplo do que a figura do artista
das camadas mais pobres das populações mundiais a conquistas ocidentalizado – poderia ser ampliada para uma presença mais
da arte moderna e contemporânea”. No mais, a exposição efetiva de agentes outros. É ainda sob crivo de artistas não
lhe pareceu fracassada por se fiar no papel redentor de minorias indígenas (como Bené Fonteles, Maria Thereza Alves ou Gabriel
que, no entanto, contribuiriam apenas para “mudanças pontuais Abrantes) que indígenas marcam sua presença, assim
de leis e costumes, embora sua pouca vocação para o poder – acomodados nas narrativas e referências dos outros. Trata-se,
talvez para a nossa sorte – não as coloque como alternativa contudo, de uma Bienal que abre o seu eixo curatorial para
de governo”. A arte teria, portanto, faltado na Bienal, por seu a arte produzida na África, e a partir de seus dilemas, como
excessivo apego às “ideologias, [que] são tigres de papel”. demonstram os trabalhos de Misheck Masamvu e Mmakgabo
A crítica Aracy Amaral (O Estado de S.Paulo, 27 de setembro de Helen Sebidi. A armadilha, no entanto, estaria em valorizar suas
2016), por sua vez, desdenha a presença excessiva de trabalhos pinturas e desenhos apenas enquanto “conquistas” atingidas
que não atingem o nível de verdadeiras “obras”, de uma “pintura pela adoção de uma forma plástica consagrada pela arte
maior”, de um “saber fazer” característico da produção de moderna, como se isso fosse critério necessário para aferir
artistas individuais. A presença indígena estaria ali reduzida a sua pertinência e introdução no meio seleto da boa arte.
ao que ela apresenta como o “trabalho de Vincent Carelli”. Seria igualmente insuficiente desvalidar outras tantas propostas
A tentativa de “diálogo com o meio ambiente” ficaria, ainda, que exploram assuntos candentes tais como o feminismo,
comprometida pela “dificuldade de uma poética ou do contato o colonialismo e o ativismo da imaginação como meros
com a realidade atual através da arte”, que não teria reagido, improvisos antropológicos desprovidos de alta elaboração
por exemplo, à tragédia da mineradora Samarco no Rio Doce. estética ou acadêmica. Se é verdade que nesta Bienal, assim
Para alguém que não é crítico de arte, como eu, essas impressões como em outras tantas exposições recentes de grande porte,
são esclarecedoras. Elas revelam uma dificuldade de nossa a reflexão criadora, transversal e politizada, talvez ainda esteja
intelligentsia em assimilar os desafios demandados pelo em busca de seu modo de expressão para a produção do diálogo
colapso contemporâneo. Ora, as questões impulsionadas desafiador, não é menos verdadeiro que ela destaca, acima
pela tal “ecologia”, como bem mostraram Déborah Danowski de tudo, uma ação transformadora. É justamente esta que pode
e Eduardo Viveiros de Castro em Há Mundo por Vir? (2014), ainda fazer da arte, para além de suas configurações elitistas,
não pertencem mais a uma área, mas a uma era. A 32ª Bienal uma ferramenta poderosa de exercício crítico, capaz
de São Paulo, entre erros e acertos, reflete contudo sobre o papel de projetar as condições de uma vida que merece ser vivida.
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Book_37.indb 113 11/21/16 8:30 PM