Page 96 - ARTE!Brasileiros #38
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CRÍTICA EXPOSIÇÃO







             O ATESTADO DE NOSSA IMPOTÊNCIA

             Mostra no Tomie Ohtake afunda na sensação cotidiana do absurdo

             POR GUSTAVO FIORATTI



             A IDEIA DE ABSURDO não é apenas a de uma quebra
             no sentido lógico do que nos cerca. Quando representado
             pelo dadaísmo, movimento iniciado em 1916, o absurdo nos
             propôs observar a vertigem do excesso de realidade produzido,
             naquele caso, pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
             Logo depois, houve desdobramentos mais abusados
             no surrealismo, sob o estímulo das teorias da psicanálise
             e a conceituação de Freud sobre as três esferas do eu.
             Se o absurdo por si só não existe na natureza senão como
             manifestação simbólica de uma falha abrupta da razão,
             ele se torna inerentemente humano, produzido pelo erro,
             pelo excesso, por desvios significativos. E também pelo sonho –
             o momento em que todos os caminhos em terra se fecham
             e a saída é pelo ar. É como Dançar sobre a Arquitetura, mostra
             no Instituto Tomie Ohtake com participação de Lia Chaia,
             João Castilho e Jorge Soledar, expõe pontos aparentemente
             menos trágicos dessa variação anímica. E há fortes chances
             de a palavra “aparentemente”, neste caso específico,
             ser ela a própria tragédia.
             O título, segundo texto da mostra, faz referência à frase
             “escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura”,
             de autoria desconhecida, mas citada por artistas como    FOTO DA SÉRIE COMUNIDADE (2017), DE JOÃO CASTILHO
             Frank Zappa. Os artistas escolhidos, em suas obras,
             vão encontrar, como campo comum, caminhos entre
             uma determinada linguagem (a escrita e a dança)    Em um vídeo, ela nada em uma piscina com raias que
             e outra linguagem (a música e a arquitetura).    não são paralelas (vemos a cena de cima). O traçado, nos
             O erro (ou o absurdo) será de leitura, porque o decalque de   azulejos, forma desenhos labirínticos, e flutuar sem rumo
             uma manifestação artística por um campo de expressão vizinho   passa a ser não uma desobediência à regra, mas sua única
             é por si só precário quando o objetivo é fazer sentir a vibração   opção. Em outro vídeo, Chaia caminha pela cidade (agora
             da matriz. A primeira sala da mostra abriga o trabalho de   sim obrigada a manter-se fiel ao traçado), só que amarrada
             Jorge Soledar com manequins de membros seccionados. Há,   a conjuntos de bolas, o que a torna uma espécie de anomalia
             dispostos pela sala, mãos sem dedos, o tronco de um homem   ambulante, habituada à própria inadequação. Por fim, Chaia
             sem barriga, cabeças perdidas no espaço. E também um aviso:   exibe trabalhos com telas utilizadas pelo setor da construção
             o público pode manusear aquelas próteses e que carecem,    civil e sinalizações pintadas na parede, ressaltando o sentido
             elas mesmas, de outras próteses para se tornarem completas.  crônico de sua visão sobre a iconografia das cidades e seus
             A falta de refinamento dos manequins assume uma   desdobramentos falhos na formulação de sentidos lógicos.
             compreensão parca sobre a relação entre o que a indústria   A última sala da mostra é dedicada a uma série de fotografias
             toma como modelo do humano e o humano em si. No texto    de João Castilho, com registros de encenações (há uso de
             de introdução da mostra, diz-se que “a cidade contemporânea   atores) que remetem nominalmente à obra de Franz Kafka.
             perdeu conexão com o corpo humano, enquanto suas ruas,   É a obra que fecha o recado mais direto da mostra
             praças, avenidas e pontes foram reduzidas a meros locais    e que a coloca no vértice de um manifesto ideológico.
             de passagem”. A leitura imediata da obra é parecida,    Castilho encena, em lugares áridos e cheios de concreto,
             embora também esteja escrito ali que a interatividade    a incapacidade de escaparmos da inércia mais estúpida em
             com as peças questiona padrões de comportamento   que nos jogam os códigos da civilização e a ideia de progresso
             institucionais (uma bobagem, uma vez que a interatividade    propagada pelo capital. A capacidade de resiliência humana
             já se tornou um código tradicional em museus). O trecho   contém em si o absurdo de adequar-se ao pesadelo,
             anterior sobre a cidade também reduz a complexidade    em vez de superá-lo, parece dizer. Quando sobrevivemos
             de fenômenos urbanos, tão diversos e polifônicos.  ao insuportável, ou ao ilógico, sem que o insuportável
             O trabalho de Chaia não é condescendente com diagnósticos,   seja propriamente superado, tornamo-nos não exatamente
             especialmente porque se vale de comicidade e leveza.    impotentes, mas condescendentemente impotentes.


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