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CRÍTICA EXPOSIÇÃO
O ATESTADO DE NOSSA IMPOTÊNCIA
Mostra no Tomie Ohtake afunda na sensação cotidiana do absurdo
POR GUSTAVO FIORATTI
A IDEIA DE ABSURDO não é apenas a de uma quebra
no sentido lógico do que nos cerca. Quando representado
pelo dadaísmo, movimento iniciado em 1916, o absurdo nos
propôs observar a vertigem do excesso de realidade produzido,
naquele caso, pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Logo depois, houve desdobramentos mais abusados
no surrealismo, sob o estímulo das teorias da psicanálise
e a conceituação de Freud sobre as três esferas do eu.
Se o absurdo por si só não existe na natureza senão como
manifestação simbólica de uma falha abrupta da razão,
ele se torna inerentemente humano, produzido pelo erro,
pelo excesso, por desvios significativos. E também pelo sonho –
o momento em que todos os caminhos em terra se fecham
e a saída é pelo ar. É como Dançar sobre a Arquitetura, mostra
no Instituto Tomie Ohtake com participação de Lia Chaia,
João Castilho e Jorge Soledar, expõe pontos aparentemente
menos trágicos dessa variação anímica. E há fortes chances
de a palavra “aparentemente”, neste caso específico,
ser ela a própria tragédia.
O título, segundo texto da mostra, faz referência à frase
“escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura”,
de autoria desconhecida, mas citada por artistas como FOTO DA SÉRIE COMUNIDADE (2017), DE JOÃO CASTILHO
Frank Zappa. Os artistas escolhidos, em suas obras,
vão encontrar, como campo comum, caminhos entre
uma determinada linguagem (a escrita e a dança) Em um vídeo, ela nada em uma piscina com raias que
e outra linguagem (a música e a arquitetura). não são paralelas (vemos a cena de cima). O traçado, nos
O erro (ou o absurdo) será de leitura, porque o decalque de azulejos, forma desenhos labirínticos, e flutuar sem rumo
uma manifestação artística por um campo de expressão vizinho passa a ser não uma desobediência à regra, mas sua única
é por si só precário quando o objetivo é fazer sentir a vibração opção. Em outro vídeo, Chaia caminha pela cidade (agora
da matriz. A primeira sala da mostra abriga o trabalho de sim obrigada a manter-se fiel ao traçado), só que amarrada
Jorge Soledar com manequins de membros seccionados. Há, a conjuntos de bolas, o que a torna uma espécie de anomalia
dispostos pela sala, mãos sem dedos, o tronco de um homem ambulante, habituada à própria inadequação. Por fim, Chaia
sem barriga, cabeças perdidas no espaço. E também um aviso: exibe trabalhos com telas utilizadas pelo setor da construção
o público pode manusear aquelas próteses e que carecem, civil e sinalizações pintadas na parede, ressaltando o sentido
elas mesmas, de outras próteses para se tornarem completas. crônico de sua visão sobre a iconografia das cidades e seus
A falta de refinamento dos manequins assume uma desdobramentos falhos na formulação de sentidos lógicos.
compreensão parca sobre a relação entre o que a indústria A última sala da mostra é dedicada a uma série de fotografias
toma como modelo do humano e o humano em si. No texto de João Castilho, com registros de encenações (há uso de
de introdução da mostra, diz-se que “a cidade contemporânea atores) que remetem nominalmente à obra de Franz Kafka.
perdeu conexão com o corpo humano, enquanto suas ruas, É a obra que fecha o recado mais direto da mostra
praças, avenidas e pontes foram reduzidas a meros locais e que a coloca no vértice de um manifesto ideológico.
de passagem”. A leitura imediata da obra é parecida, Castilho encena, em lugares áridos e cheios de concreto,
embora também esteja escrito ali que a interatividade a incapacidade de escaparmos da inércia mais estúpida em
com as peças questiona padrões de comportamento que nos jogam os códigos da civilização e a ideia de progresso
institucionais (uma bobagem, uma vez que a interatividade propagada pelo capital. A capacidade de resiliência humana
já se tornou um código tradicional em museus). O trecho contém em si o absurdo de adequar-se ao pesadelo,
anterior sobre a cidade também reduz a complexidade em vez de superá-lo, parece dizer. Quando sobrevivemos
de fenômenos urbanos, tão diversos e polifônicos. ao insuportável, ou ao ilógico, sem que o insuportável
O trabalho de Chaia não é condescendente com diagnósticos, seja propriamente superado, tornamo-nos não exatamente
especialmente porque se vale de comicidade e leveza. impotentes, mas condescendentemente impotentes.
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Book_ARTE_38_POR.indb 96 3/3/17 9:52 PM