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EXPOSIÇÃO SÃO PAULO
exposição onde estes dois universos estão coexistindo ensinar a viver no futuro porque elas já passaram pelo
no mesmo espaço e criando aproximações, distancia- fim do mundo”, diz Dos Anjos, remetendo a conceitos
mentos, atritos, acolhimentos e tensões, sempre dando discutidos por “antropólogos como Eduardo Viveiros
ênfase à questão da resistência”, explica Dos Anjos. de Castro. “Quer dizer, o mundo deles já caiu. Então
Com trabalhos – entre fotografias, pinturas, vídeos e eles aprenderam a viver após uma hecatombe, digamos
desenhos – de Ailton Krenak, Anna Bella Geiger, Bené assim, que sofreram quando foram colonizados. Estão
Fonteles, Carlos Vergara, Claudia Andujar, Delson Uchôa, vivendo o ‘pós-fim do mundo’, e criaram formas de se
Fred Jordão, Lygia Pape, Nunca, Paulo Nazareth e Thiago adaptar a essa situação e de se inscrever nesse mundo
Martins de Melo, além de adornos e artefatos de 23 pós-apocalíptico. Então temos muito a aprender com os
populações indígenas brasileiras – dos Guarani do Sul aos índios, em como vivem, preservam…”.
Yanomami do Norte, dos Canela do Nordeste aos Bororo Sobre a crescente atenção dada pela arte contemporânea
do Centro-Oeste –, a mostra é dividida em três eixos: o às temáticas indígenas – algo notável em exposições,
corpo como suporte de resistência; os testemunhos de bienais e trabalhos de artistas –, Dos Anjos acredita
resistência; as celebrações como resistência. Segundo o que o fato se relaciona à urgência de tratar a questão
curador, ao colocar lado a lado produções nativas e de em tempos de ataque constante aos direitos dessas
artistas contemporâneos, a exposição ajuda também a populações no Brasil. “Não é à toa que a exposição
quebrar ideias naturalizadas e pensamentos estanques. tem esse caráter de resistência”, afirma. Para tratar do
“O conceito de arte, assim como o de estética, é estranho tema, além de todos os adornos e trabalhos artísticos
à produção indígena, e nesse sentido temos que ter muito expostos, três vídeos na mostra apresentam de forma
cuidado quando tratamos dela. Desse modo, colocar a mais didática tanto aspectos relevantes da cultura indí-
arte contemporânea e os adornos juntos pode nos ajudar gena quanto notícias sobre a situação, por exemplo, dos
a perceber que esses conceitos não são naturais, são Guarani Kaiowá, um dos povos mais atacados no País.
construídos. Nos ajuda a questionar por que uma coisa “Na verdade, a escolha do caminho de desenvolvimento
é considerada arte e outra não, por exemplo. Ou mesmo econômico que foi feita no Brasil conflita, no limite,
pensar se é possível estabelecer outras formas ou con- com a própria existência dos territórios indígenas e,
ceitos em que essas coisas estejam juntas: como é que portanto, com a existência dos povos indígenas. A sua
podemos entender uma obra fotográfica e uma pintura existência conflita com esse desenvolvimento fundado no
corporal no mesmo patamar conceitual?”, diz Dos Anjos. agronegócio, na mineração e na produção agropecuária
“Por outro lado, é preciso todo o cuidado para não tratar para exportação que, no limite, vai passar por cima dos
como se fosse tudo a mesma coisa, como se pudesse territórios e direitos indígenas”, diz o curador.
ser tudo reduzido ao conceito de arte ou de artefato.” Dos Anjos afirma também que, apesar de a discussão
Para o curador, a fala de Ailton Krenak apresentada no estar crescendo no meio da arte contemporânea, ela
vídeo tem um lugar especial na mostra justamente por ainda é tímida diante da gravidade da situação. “Você
ser mais que um discurso político. “É muito interessante conta nos dedos, no universo dos artistas reconhecidos,
como aquela fala é feita, porque está justamente no aqueles que tratam dessa questão. Ainda estamos longe
limite entre a pintura indígena como resistência e a de ter esse assunto colocado com o destaque que deve-
performance artística.” É, também, um dos trabalhos que ria.” Exposições como A Queda do Céu (Paço das Artes,
explicitam o quanto é preciso ouvir e aprender com os 2015), Variações do Corpo Selvagem: Eduardo Viveiros de
povos indígenas “As populações ameríndias podem nos Castro (Sesc Ipiranga, 2015), Histórias Mestiças (Instituto
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